Mudei o meu nome para arquitectura

Artigo originalmente publicado no Ípsilon a 14 de Dezembro de 2007

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A cidade segundo Niemeyer é uma cidade de vazios conformados por edifícios colossais, onde os ambientes internos funcionam como os novos Reuters

O domínio da forma sobre a função o inverso do pensamento "moderno" - é uma das maiores conquistas da arquitectura contemporânea. Para a compreender hoje é preciso passar por Niemeyer.

Quando é que um homem é velho de mais? Oscar Niemeyer, brasileiro, arquitecto, comunista, terá amanhã 100 anos. É um génio (e quantos génios têm 100 anos?).

Depois de mortos Le Corbusier e Mies van der Rohe durante os anos 60 ou Alvar Aalto, já na década de 70, é demasiado fácil descrever Niemeyer como o maior arquitecto vivo do século XX. Falamos de um homem que mudou a arquitectura duas vezes e a tornou verdadeiramente numa expressão "popular". E foi o primeiro arquitecto de língua portuguesa a receber o Prémio Pritzker, em 1988. A legenda de "maior arquitecto vivo do século XX" é, portanto, quase ofensiva.

A arquitectura, por enquanto, ainda se inscreve na eternidade, por isso Niemeyer podia ter dito, embora o poeta Ruy Belo o tivesse feito por si: "Niemeyer mudou de nome e chama-se agora somente arquitectura." Para compreender a arquitectura contemporânea é preciso passar por Niemeyer.

Poucos arquitectos provocam inflexões no modo de pensar a profissão. Esse facto tem, simultaneamente, prejudicado e beneficiado a arquitectura.

A sociedade, que precisa dos arquitectos enquanto técnicos habilitados a resolver problemas, é tendencialmente conservadora e avessa a mudanças arquitectónicas. A arquitectura, por seu lado, precisa dos arquitectos para fazerem avançar a disciplina. Niemeyer tem sido um desses raros homens.

É por isso que lhe reconhecemos o estatuto de genialidade: é um génio vivo e as suas visões, mesmo as da velhice, não devem ser levianamente consideradas.

Com Niemeyer a crítica sempre correu fácil. Muitas vezes tem a sua arquitectura sido confundida com o modo como ele enfrenta ou declara publicamente enfrentar a sua vida privada. Hipocondríaco, boémio, namoradeiro. Um perfil oposto ao que os arquitectos, desde o século XX e com poucas excepções, têm montado de si próprios: inacessíveis, sábios, rigorosos. Niemeyer cultiva a amizade, a festa e a sociabilidade.

Evita a solidão. "Sou pessoa simples, aberta para a vida, apta a aceitar as mudanças que os tempos estabelecem", escreve nas suas "memórias".

Cedo compreendeu que "mudar a sociedade" como confessou em 1964 ser intenção sua e dos seus companheiros comunistas em interrogatório conduzido pela Polícia Política no arranque da ditadura militar, que durou até aos anos 80 não era desígnio da arquitectura. Mais tarde declararia, irritando os radicais: "Nós, arquitectos, estávamos enganados quando pensávamos nos grandes complexos populares. a miséria do nosso povo é maior... tão grande que os nossos irmãos mais pobres só reclamam um pequeno lote onde possam construir seus míseros barracos." O fim da inocência anuncia-se aqui, por Niemeyer. É um golpe duro para a arquitectura moderna e todavia fundamental para aliviá-la de compromissos ideológicos e sociais que impediam a sua progressão. Niemeyer tinha já iniciado a "revolução" nos anos 40: a artisticidade da arquitectura desencadeará a mudança necessária. Antecipa o arquitecto autor que contrasta com a arquitectura de seriação (ou "standard").

A forma e a função
Tradicionalmente, a arquitectura de Niemeyer vive da tensão entre dois picos a plasticidade do novo material que o betão armado potencializou a partir dos anos 30 (quando começou a trabalhar) e a reflexão sobre os limites estruturais.

Há um Niemeyer que libertou a forma rígida da arquitectura moderna, estática e refém dos propósitos funcionalistas da chamada "nova objectividade" da escola alemã (que interpretava o arquitecto como um fazedor de edifícios higiénicos). Esse Niemeyer impôs-se com 33 anos num projecto de quatro edifícios para a cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, então administrada por Juscelino Kubistchek, futuro Presidente do Brasil: Igreja de São Francisco, Casino, Casa de Baile e Yatch Clube.

Há um segundo Niemeyer que defende a clareza estrutural enquanto condutor da forma.

Foi o que propôs com 50 anos, enquanto desenhava, no final da década de 50, os edifícios oficiais de Brasília, a nova capital do Brasil, construída em três anos e seis meses. Irremediavelmente, Niemeyer irá sempre confundir-se com Brasília, com as conquistas e os fracassos do plano elaborado pelo arquitecto Lúcio Costa e que muito justamente sempre defendeu: "Brasília surgiu como uma flor do deserto, dentro das áreas e escalas que seu urbanista criou, vestida com as fantasias da minha arquitectura." O domínio da forma sobre a função o inverso do pensamento "moderno" é uma das maiores conquistas da arquitectura contemporânea. Por isso, Rem Koolhaas delineará, no limiar do século XXI, a tese do uso das "formas relevantes" (a propósito da Casa da Música do Porto, por exemplo), ou seja, o recurso a uma forma arquitectónica específica em função da sua potencialidade iconográfica e independentemente das solicitações utilitárias do edifício. Koolhaas haveria de comentar ao jornal "Folha de São Paulo", em 2002: "Aos 12 anos queria ser um arquitecto brasileiro." A exploração iconográfica da forma é o centro da obra "oscariana", basta mencionar os palácios de Brasília (realizados entre 1956-60 e posteriores), o Edifício da Editora Mondadori (Milão, 1968) ou a Sede do Partido Comunista Francês (Paris, 1965), "a única coisa boa que os comunistas fizeram", como provocava o Presidente Pompidou.

São edifícios que não se elevam sobre pilotis, mas pairam sobre plataformas vazias, explorando formas puras e metafísicas. Le Corbusier fez qualquer coisa de parecido em Chandigarh, na capital do Punjab, Índia (1951), mas insistindo em feições mais primitivas. A influência do arquitecto francês, 20 anos mais velho, é aliás permanente.

Expõe-se aqui uma nova monumentalidade que antecede as visões contemporâneas.

Niemeyer desenha megaestruturas para Paris, Argel, Haifa, Brazzaville, Miami ou Vicenza... O Funchal, no complexo hotelcasino encomendado pela família Barreto em 1965 e só inaugurado depois de Abril de 1974, será a oportunidade para "mexer" com a geografi a local criando uma nova medida paisagística. Não é a sua única proposta para Portugal, mas é a que será construída. Niemeyer não necessita sequer de visitar a ilha: a universalidade da sua arquitectura é uma conquista indelével. Os portugueses, na época empenhados em discursos domésticos, não prestam atenção.

O "clássico" atavismo nacional fá-los, com poucas excepções, desconfiar desde Brasília.

Com Niemeyer, a arquitectura monumental multiplica-se sem pudor dentro da experiência moderna e globaliza-se, não sem causar alguns constrangimentos.

A cidade segundo Niemeyer é uma cidade de vazios conformados por edifícios colossais, onde os ambientes internos funcionam como os novos espaços colectivos. Por isso, e como consequência dos contornos plásticos externos, há uma forte e nova espacialidade nos interiores dos seus edifícios. Mas há ainda outros "niemeyers" que recentemente têm sido isolados da obra identifi cada como mais formal.

Há o Niemeyer que trabalha em projectos residenciais e de escritórios, em São Paulo ou Belo Horizonte, onde estabelece um diálogo com os elementos preexistentes, renovando a cidade tradicional através de modelos de continuidade com a história, mesmo recorrendo a formas poderosas é o caso do Edifício Copan (1951-70), na capital paulista, residência de cerca de cinco mil pessoas, modelos esses hoje estudados no âmbito do futuro das cidades sulamericanas.

Há, por fim, o Niemeyer comprometido politicamente que embarca no sonho da reforma educacional em massa de Darcy Ribeiro e do governador Leonel Brizola e promove um projectotipo para implantar cerca de cinco centenas de escolas no estado do Rio de Janeiro ao longo dos anos 80, os chamados Centros Integrados de Educação Pública (CIEP): "As crianças pobres gostavam de frequentá-los, como se isso lhes desse a esperança de que um dia poderiam usufruir o que até hoje só aos mais ricos é permitido. Para mim, essa ideia da simplicidade arquitectural é... discriminação inaceitável." Hoje discutimos a presença "episódica" da arquitectura em lugares desestruturados como forma de alavancar a mudança.

Internamente, a celebridade de Niemeyer transformará a sua arquitectura numa verdadeira manifestação do espírito popular.

Os arcos do Palácio da Alvorada a residência oficial do Presidente da República em Brasília multiplicam-se em arquitecturas "sem arquitecto". É o lado "kitsch" de Niemeyer. O fenómeno chega mesmo a Portugal. No jornal "Diário de Lisboa", nos anos 60, escreve-se a propósito de um colégio em Moimenta da Beira: "O externato desta vila ampliou o seu edifício com um projecto inspirado na traça de Brasília. a frontaria do edifício é dominada por amplas chanfraduras limitadas por arcos airosos, semelhantes aos do palácio da Alvorada." Apesar de ter afirmado que "melhorar favela com arquitectura é besteira, tem é que acabar com a pobreza", Niemeyer vai desenhando propostas para populares que a si directamente recorrem. A arquitectura que faz toca a tradição de uma cultura genuinamente brasileira. Sophia de Mello Breyner descreveu deste modo o processo em "Geografia": "O Brasil emergiu do barroco e encontrou o seu número." Quantos são os homens que mudam de nome?


 
 

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