Série Mar Português: tanto mar para tão pouca marinha

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Governo quer rever relação das forças entre CEMGFA e chefes dos ramos Miguel Dantas

Nas vésperas do alargamento da área de jurisdição nacional no mar, a Marinha vê-se a braços com o congelamento de equipamentos essenciais para prossecução da sua missão. A contenção financeira a isso obriga. Perante essa realidade, a solução passa por "ajustamentos" e aproveitar "sinergias", tanto dentro do Estado português, como com entidades internacionais e outros países.

As Forças Armadas Portuguesas estão moderamente equipadas e reforçadas com uma força substancial de reservistas bem treinados. A Força Aérea detém uma capacidade de ataque adequada, mas a Marinha padece de uma frota envelhecida." É assim que o Military Balance, publicado no passado mês de Março pelo Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, inicia sua avaliação à capacidade militar portuguesa.

A situação não é nova, mas com a imposição das políticas de restrição orçamental, os programas de reequipamento há muito definidos para as Forças Armadas foram primeiro cativados e depois cancelados. No caso da Marinha, essa decisão implicou o congelamento, por exemplo, da construção de seis dos oito navios de patrulha oceânicos, que deveriam substituir as envelhecidas corvetas da Armada.

A limitação de meios na Marinha ganha outra relevância, se se tiver em conta o projecto de alargamento da Plataforma Continental. Significa a extensão da área de soberania marítima portuguesa dos actuais 1,7 milhões de quilómetros quadrados para os 3,8 milhões de quilómetros quadrados. Mesmo sem essa extensão Portugal já é o 11.º maior país do mundo em termos de área de águas jurisdicionais.

Para além disso, à Marinha e à Força Aérea estão cometidas missões que vão para lá da defesa militar daquele espaço. Têm também um papel no desenvolvimento cientifico e económico relacionado com o mar. Isso traduz-se na obrigação de fazer frente a ameaças tão variadas como o terrorismo, pirataria, proliferação de armamento, narcotráfico, tráfico de seres humanos, imigração ilegal, depredação de recursos vivos e não vivos, combate à poluição no mar. Tudo isto numa área pela qual passa 53% do comércio externo da União Europeia.

No Ministério da Defesa, garantir a soberania e a vigilância em tanto mar numa altura de contenção orçamental não é visto como uma missão impossível. Implica "ajustamentos" nas despesas, ao mesmo tempo que se procuram soluções que potenciem poupanças.

"Temos a esquadra ideal, temos a estrutura ideal? Não temos, daí a definição de prioridades", afirma Paulo Braga Lino, secretário de Estado da Defesa, ao PÚBLICO. Para o governante, há duas prioridades: a reafectação de meios financeiros para a operação e a procura de tecnologia de ponta.

Como exemplo, Braga Lino cita o "rearranque a muito curso prazo da conclusão do segundo navio de patrulha oceânico (NPO)". O objectivo é ter os dois novos navios no mar já em 2013. Não só pela necessidade de substituir equipamento obsoleto, mas também pela poupança possível. "Um NPO a fazer fiscalização face aos meios actuais requer muito menos pessoas", assegura o secretário de Estado, comparando os 33 militares necessário para preencher a guarnição de um NPO, por oposição aos 66 que a corveta mais antiga exigia. "O que temos de garantir é que, com meios mais eficientemente geridos e com tecnologia mais avançada, conseguimos fazer esse patrulhamento sem que seja necessária a presença física", explica.

A Marinha já de há uns anos a esta parte que se tem precavido para este desafio através de um conjunto de estudos sobre o planeamento de forças, tendo em conta a extensão da Plataforma Continental.

Em 2010, o Grupo de Estudos e Reflexão Estratégica da Marinha publicou um trabalho precisamente sobre "A Plataforma Continental Portuguesa e o Hypercluster do Mar". Uma das vertentes dessa análise foi a "Plataforma Continental na Problemática da Defesa Nacional", feita pelo vice-almirante e ex-vice-chefe do Estado-Maior da Armada Lopo Cajarabille.

Ao inventariar o "actual sistema de forças", o vice-almirante concluiu ser "evidente que os meios necessários para vigiar e fiscalizar uma plataforma continental de 1,7 milhões de quilómetros quadrados não serão suficientes para uma plataforma continental de mais do dobro dessa grandeza".

Por isso, o estudo propunha "redimensionar a Marinha". E enumerava um conjunto de meios adicionais que considerou essenciais. Começou pelos patrulhas oceânicos, cujo contrato de construção foi assinado por Paulo Portas, quando era ministro da Defesa. E defendeu que a Marinha necessitaria para a sua missão de "vigilância permanente e intervenção sem oposição militar" não dos oito destes navios que estão previstos mas sim de dez.

Um número bem distante do que a Marinha tem hoje ao seu dispor. O actual ministro da Defesa congelou o contrato de Portas. Dos oito apenas dois serão construídos nos próximos tempos, tendo a Armada de cumprir a sua missão com as corvetas que têm cerca de 40 anos de serviço.

As fragatas foram citadas pela sua capacidade de "intervenção musculada". Também aqui Lopo Cajarabille aponta para a falta de meios, defendendo a existência de seis, em vez das actuais cinco fragatas.

No que toca aos submarinos, a contabilidade também peca por defeito. "Com dois submarinos não se garante a disponibilidade permanente de uma unidade", alertou o vice-almirante antes de propor que o Estado português dispusesse de quatro submarinos. Mas admitindo que seria possível resolver o problema com a obtenção de "dois novos submarinos de menor dimensão e capacidades".

Alertou ainda para o problema do reabastecimento da esquadra, actualmente feita por um único navio, o Bérrio. Lembrando os períodos de indisponibilidade para manutenção, defendeu a aquisição de outro ou então "ter um navio mercante preparado com antecedência para ser adaptado a reabastecedor". "Sem reabastecedor, as fragatas perdem muita autonomia", referiu.

O vice-almirante apontou ainda para a necessidade de "aumentar a capacidade em termos de equipas [de fuzileiros] especializadas de abordagens", mas também de aquisição de quatro drones, ou veículos aéreos não tripulados. Uma solução que daria "maior eficácia à vigilância marítima de forma relativamente barata".

Mas a actual realidade portuguesa afasta qualquer possibilidade de concretizar este exercício de previsão de meios feita por um vice-chefe de Estado-Maior da Armada. No ministério, a posição sobre o reequipamento é clara. Não vale a pena ter no papel uma Marinha perfeita que depois na prática não pode ser criada devido aos constrangimentos financeiros. O Governo só vai "tomar decisões que sejam verdadeiramente possíveis de executar" avisa o secretário de Estado da Defesa.

Há outras formas de se atingir o objectivo de garantir a "perfeita cobertura dessa extensão" de mar, explica Braga Lino. A este estudo contrapõe que não se pode "estar só a falar de presença física no mar": "Temos de garantir que todo o sistema de fiscalização funciona. Alargar o espectro de fiscalização mesmo sem estarmos fisicamente a navegar."

A estratégia está definida. Estudar a área para identificar as zonas potencialmente mais importantes em termos de garantia de segurança e vigilância. Braga Lino cita o trabalho desenvolvido e a desenvolver pelos dois navios do Instituto Hidrográfico: "Para conseguirmos maximizar a eficiência da utilização dos nossos próprios recursos é fundamental que tenhamos conhecimento aprofundado de toda a área."

Depois, é necessário manter um sistema de vigilância capaz de monitorizar toda aquela extensão marítima. Radares e satélites, portanto. Aqui, o governante começa a falar de sinergias. Seja entre organismos do Estado português, seja através da cooperação com entidades estrangeiras.

Ao nível do Estado português, dá o exemplo na fiscalização da orla costeira, que pode ser articulado com o sistema gerido pelo Ministério da Administração Interna. Este, nos últimos meses, tem sido notícia por não estar em condições de assegurar efectivamente essa vigilância.

Mas no mar alto os parceiros terão de ser outros. Aproveitar equipamentos de outros países. "Ao nível da nossa indústria de defesa, uma das nossas empresas dispõe e desenvolve sistemas que, sendo vendáveis e depois utilizáveis por outras entidades, poderão por nós ser aproveitados, ainda que não estejam em nossa posse." Braga Lino fala do sistema de radares a ser instalado nos Açores para serem utilizados pela NATO. Mas não só.

O Governo não descarta a possibilidade de conseguir que outros países partilhem com Portugal o uso de satélites para monitorização do território. Essa solução terá, porém, o risco de se ter acesso a esse tipo de equipamentos com algum atraso temporal e filtrado por esses países aliados.

O chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), almirante Saldanha Lopes, admite que essa situação implique um risco para a soberania. "Onde houver vazio alguém o irá ocupar", reconhece."Nós em tantos domínios – para não irmos mais longe nos domínios económico e financeiro – não podemos esquecer que há interesses. E esses interesses acabam por ser condicionantes de toda uma actividade económica, uma actividade própria da potencialidade de um país se assumir com as suas mais-valias."

Mas o almirante garante que, apesar das dificuldades, Portugal está ainda muito longe do vazio. "Neste momento estamos a caminhar para uma marinha equilibrada", assegura. É possível garantir a soberania mesmo partilhando meios nesta missão. Não é necessário, garante, encher o mar de navios portugueses. "Eu não preciso de ter 20 fragatas ou dez submarinos... Eu preciso de ter o mínimo para poder desempenhar estas funções, capacidade de resposta no espectro de áreas em que podemos ser chamados a responder. Uma marinha que tenha estas capacidades e que possa colaborar com outras nas diversas vertentes da acção no mar", explica.

A avaliação que faz, indicia que os investimentos feitos no passado recente deixaram a Marinha melhor do que estava há uns anos: "A renovação da esquadra começou há 20 anos, chegámos a um ponto em que temos as fragatas de que necessitamos, que são cinco, os submarinos é o mínimo, mas não temos capacidade para ter mais."

No caso destes últimos, cuja aquisição ainda hoje continua envolta em polémica, Saldanha Lopes faz questão de frisar que em termos operacionais representam uma vantagem. Os submarinos são polivalentes nas missões que podem desempenhar, explica, dando como exemplo a sua aplicação no combate ao narcotráfico. Mas não só: "Como arma substitui muitos navios de superfície. É uma arma fantástica e económica. Se pensarmos que os nossos [dois] submarinos custaram mil milhões de euros, posso dizer-lhe que as fragatas que estão a ser construídas para a Marinha espanhola custam cada uma mil milhões de euros..."

O essencial, portanto, é dar sinais que o país, enquanto Estado de direito, está atento ao que se passa na sua área de jurisdição. "Não é necessário permanecer nessa área. É necessário é ter presença, ter cooperação e estarmos atentos", afirma. Mostrar que Portugal "não desistiu" das suas obrigações, ainda que necessite de apoio para as cumprir.

Mas Saldanha Lopes não esconde que existem problemas. O atraso na chegada dos NPO é a principal dor de cabeça. "Temos problemas exclusivamente na renovação dos navios mais antigos [corvetas] e que são a espinha dorsal neste dispositivo que temos de ter para esta área", admite.

A expectativa do almirante é que esse investimento venha a ser possível mais tarde. "Eu espero que estes projectos prossigam, têm o seu timing condicionado pela crise que o país atravessa, mas os passos estão a ser dados no sentido de podermos prosseguir. Pelo menos é a indicação que a tutela nos dá. Talvez com um pouco de atraso..."

A dúvida que se instala, então, é se Portugal terá condições para cumprir as suas missões de forma exemplar durante alguns anos. Mas o secretário de Estado da Defesa rejeita liminarmente que Portugal não tenha essa capacidade, lembrando não ser este o primeiro período em que os miliatres têm de lidar com este tipo de desvantagens: "Até hoje todas as missões atribuídas às FA têm sido cumpridas sem falhas."

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