Por favor não lhe falem em dramas porque ele prefere resolver coisas triviais

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Woody Allen na rodagem de Para Roma, com Amor Reuters

Os filmes são sofisticados mas despretensiosos, um pouco como a vida do realizador que a América respeita mas a Europa venera. Diz que sabe representar um coitado ou um intelectual, mas nada de Shakespeare ou Strindberg. Porque não é actor. Apesar de Para Roma, com Amor o trazer de volta também como actor. Claro que não esteve na cerimónia de entrega dos Óscares (ganhou a quarta estatueta dos seus 47 anos de carreira com Meia-Noite em Paris) porque estava deitado na cama a ver um jogo de basquetebol na televisão. ARTIGO ORIGINALMENTE PUBLICADO, A 15 DE JULHO DE 2012, NA REVISTA 2.

Está um tórrido dia de Verão em Nova Iorque, mas a recepção de um distinto edifício de Park Avenue tem um efeito de imediato arrefecimento, os seus distintos corredores de mármore mantêm o calor afastado.

Numa área mais adiante, uma porta discreta apresenta a inscrição "Centro Cinematográfico de Manhattan" e por trás dessa porta fica uma sala atulhada de caixas da FedEx, arquivos a abarrotar e os restos do processo final do negócio da criatividade. As únicas pistas que apontam para a identidade do ocupante da sala são um poster de Mighty Afrodite (Poderosa Afrodite), um livro sobre Fellini e um panamá de caqui poisado numa prateleira, à espera de se juntar a um par de igualmente icónicos óculos de massa negros.

E aí estão eles - os óculos e o homem calmo e de voz serena por trás deles. Woody Allen vai chamando por um visitante, de modo a que possa juntar-se a nós nesta sala vasta e escura. "Andava à procura de uma sala de projecção para ver filmes, só por divertimento", explica, sentando-se num dos cadeirões forrados a veludo verde. "Não queria fazê-la na minha casa, porque pensei que as pessoas nunca mais se iriam embora. Por isso fi-la aqui. E depois descobri que afinal podia fazer montagem numa sala mesmo ao lado. É óptimo - montamos o filme ali, projectamo-lo no ecrã, damos uma olhadela, detestamo-lo, levamo-lo de volta para ali e voltamos a editar. É esse o processo." A palavra "processo" soa aqui como "prechisso", arrastada no final, naquele seu típico sotaque de Brooklyn.

Há qualquer coisa no gabinete de Allen - uma mistura de confusão e luxo, localizado num edifício elegante mas discreto situado a apenas alguns quarteirões do local onde moram Spike Lee e Martin Scorsese - que define algumas das contradições que animam a sua própria vida e o seu trabalho. Os seus filmes são sofisticados mas despretensiosos; recheados de grandes estrelas mas produzidos numa escala modesta e com orçamentos reduzidos. Woody Allen permite-se desfrutar de todos os privilégios que a riqueza e o estatuto de celebridade lhe trazem, mas segue um estilo de vida relativamente pouco extravagante. Prefere eventos desportivos ou os seus concertos de clarinete semanais no Hotel Carlyle aos rituais elegantes dos grandes nomes da sociedade nova-iorquina.

Até o mais famoso episódio da vida privada de Woody - a revelação, em 1992, da sua relação com Soon-Yi Previn, a filha, então com 20 anos, da sua antiga companheira, Mia Farrow - assumiu os contornos de um paradoxo teimosamente não resolvido: uma escandalosa violação das normas sociais e familiares, mas que resultou num casamento duradouro, duas filhas e uma vida familiar estável e tranquila.

Aos 76 anos, Allen aparece descontraído e em boa forma, vestido, como se se tratasse de um uniforme, com calças de caqui e camisa com os primeiros botões abertos. Daqui a algumas horas, juntar-se-á às estrelas Penélope Cruz, Alec Baldwin e Greta Gerwig para a estreia em Nova Iorque de To Rome with Love (Para Roma, com Amor). No filme - quatro histórias entrelaçadas passadas na cidade que lhe dá o título - participam também Jesse Eisenberg no papel de um jovem estudante de Arquitectura, Roberto Benigni como um homem que se torna famoso de um dia para o outro por causa de um programa de reality TV, e, pela primeira vez em seis anos, o próprio Allen. Woody é um produtor de ópera já reformado que, quando chega a Roma para conhecer o noivo da sua filha (Alison Pill), descobre um talentoso tenor que apenas consegue cantar quando está a tomar duche.

"Acabei de escrever o argumento e vi que havia um papel que eu podia representar", diz Allen, explicando o seu regresso ao grande ecrã após um hiato de mais de meia década. "Nunca forcei nada. Nunca escrevi nada para mim. Estou a tentar manter-me fiel a uma ideia. Se tivesse feito [este filme] nos Estados Unidos, eu poderia ter ficado com o papel do Roberto Benigni. Se fosse 50 anos mais novo, poderia ter ficado com a personagem de Jesse. Agora, estou reduzido a fazer de pai de noivas."

Esta última frase é dita com a entoação resignada e com o timing impecável que os espectadores se habituaram a esperar de Allen, que, assim que aparece em Para Roma, com Amor, dispara as falas curtas e nervosas e exibe o sentimento de infortúnio amarrotado que os seus fãs adoram desde os seus primeiros filmes. "Não me custa nada", diz acerca da transformação na sua persona do ecrã. "É a única coisa que sei fazer. Não sou actor. Não sei fazer Shakespeare ou Strindberg. Só sei fazer aquilo que faço."

"Existem algumas poucas coisas diferentes que eu consigo representar de forma credível", continua. "Sei representar um intelectual ou um pobre coitado."

Como é óbvio, o lado negativo de desenvolver um alter-ego tão forte é que, quando as pessoas conhecem Woody Allen, esperam conhecer Woody Allen: uma extensão dos seus padrões de fala e da sua personalidade, claro, mas também uma personagem que ele criou ao longo de anos em palco enquanto humorista de stand-up comedy e enquanto actor nos seus próprios filmes. "Não sou tão maluco como as pessoas pensam que sou", declara. "Eles pensam que sou muito neurótico e que tenho imensas fobias e que sou incompetente, mas não é verdade. Sou muito normal, muito classe média. Levanto-me de manhã, tenho mulher e filhos, trabalho, tenho sido produtivo, pratico a minha corneta, vou a jogos de basebol, é uma vida normal. Tenho algumas peculiaridades, mas toda a gente tem as suas peculiaridades."

Quando diz "eles", Allen está a referir-se aos seus fãs, que têm tendência a ser fãs muito apaixonados e conhecedores, capazes de se lembrarem, com extrema exactidão, de falas de todos os filmes de Woody, desde o longínquo What"s up, tiger Lily? (O Que se Passa, Tigresa?). São frequentadores de cinema que se têm mantido fiéis a Allen, seguindo o seu ritmo de estreia de um filme por ano (apesar dos altos e baixos que uma produção tão regular inevitavelmente acarreta), que não deixaram de aparecer mesmo no auge da controvérsia sobre a sua vida amorosa e que fizeram de Midnight in Paris (Meia-Noite em Paris), de 2011, o maior êxito de bilheteira nos 47 anos de carreira do realizador.

Allen ganhou o seu quarto Óscar com Meia-Noite em Paris, para o melhor argumento original (no total, os seus filmes já arrecadaram 11 estatuetas douradas). Como sempre, recusou receber o prémio em pessoa. "Fazem sempre num domingo à noite", comenta sobre a cerimónia de entrega dos Óscares. "E é sempre - pode ir verificar -, sempre ao mesmo tempo que um bom jogo de basquetebol. E eu sou um grande fã de basquetebol. Ou seja, para mim é grande prazer chegar a casa e ficar na minha cama a ver um bom jogo de basquetebol. E era exactamente aí que eu estava, a ver um jogo."

E ao menos mudou de canal de vez em quando? "Não, não mudei. Não tinha a mínima ideia do que estava a acontecer. Quando o jogo acabou, estava exausto e fui dormir."

A sua carreira tem sido tão habilmente executada e regular, as referências que faz aos seus filmes mais antigos são tão ocasionais, que é fácil esquecermo-nos disto: este é o homem que realizou Bananas e O Herói do Ano 2000 e Nem Guerra nem Paz e Annie Hall e Manhattan e Hannah e as Suas Irmãs; um homem cuja carreira inclui fases com musicais (Toda a Gente Diz Que te Amo), dramas austeros (Intimidade, Uma Outra Mulher) e, mais recentemente, sinfonias de cidade em que prestou homenagem a Londres (Match Point, Scoop, Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos), Barcelona (Vicky Cristina Barcelona), Paris (Meia-Noite em Paris) e agora Roma.

A linguagem dos seus filmes - tanto oral como visual - está já tão entranhada no vernáculo norte-americano que se torna difícil lembrar como ele continua a ser realmente um outsider face ao sistema de Hollywood, uma cultura e uma prática industrial que ele nunca adoptou.

Mesmo todos aqueles Óscares - o símbolo máximo de estima por parte do mundo do espectáculo - nunca significaram nada, insiste. "Isso, ou qualquer outra coisa que eu tenha ganho, nunca mudou a minha vida, absolutamente nada", diz de forma determinada. "E o facto de Meia-Noite em Paris ter feito 160 milhões de dólares não significou que alguém se tenha chegado à frente e dito: "Gostava de financiar o seu próximo filme." Absolutamente ninguém o fez." A razão por que tem trabalhado tanto na Europa não tem a ver apenas com o facto de os institutos de artes terem financiado os filmes, conta. É que também não se imiscuem no processo criativo, ao contrário do que é regra geral em Hollywood.

"Eles não gostam de trabalhar da forma que eu gosto de trabalhar", diz Allen acerca dos investidores norte-americanos. "Gostam de ler o argumento e de dar a sua opinião. Querem poder dizer: "Bem, podes escolher os actores que quiseres, mas preferíamos que conseguisses o Brad Pitt..." Mas não os deixo fazer isso. Não os deixo ler o argumento, nem dar qualquer opinião. Por isso tenho muitos problemas para conseguir angariar dinheiro neste país."

O resultado tem sido uma carreira que, embora respeitada nos Estados Unidos e venerada na Europa, se tem mostrado desigual em termos de resultados de bilheteira e recepção crítica; enquanto a maioria dos seus filmes apresenta orçamentos de entre 15 milhões e 20 milhões de dólares (entre 12 e 16 milhões de euros), vários tiveram lucros muito menores do que isso. (Para Roma, com Amor estreou-se em força em Nova Iorque e Los Angeles a 22 de Junho e foi recebido de forma calorosa, mas não demasiado entusiástica.)

Mas Allen não define o sucesso nesses termos. "Para mim, o sucesso é: estou em casa, no meu quarto, e tenho uma ideia e acho que é uma grande ideia e depois escrevo-a e leio o argumento e digo: "Meu Deus, escrevi um belo argumento." E depois realizo-o. E se tiver realizado de forma satisfatória, sinto-me muito bem comigo mesmo. Se as pessoas o forem ver, isso é um extra delicioso."

Em Para Roma, com Amor Allen revisita algumas das ideias que tem explorado ao longo da sua carreira. Numa das linhas do enredo, Alec Baldwin faz o papel de um arquitecto de meia-idade que encontra uma versão mais jovem de si próprio, na personagem interpretada por Jesse Eisenberg. A personagem de Baldwin assombra o rapaz, como se fosse um fantasma bonzinho, alertando-o que deveria abandonar uma desastrosa relação amorosa e falando da "melancolia de Ozymandias", uma expressão para definir o sentimento de declínio inevitável - inspirada no soneto Ozymandias, de Percy Shelley - que o realizador utilizou pela primeira vez em 1980, no filme Stardust Memories (Recordações).

"É um fenómeno que, na minha opinião, aflige toda a gente, certamente afligiu o poeta e a mim também me atinge", explica Woody. "E sente-se mesmo, mesmo muito em Roma, porque vemos todas aquelas ruínas antigas e estamos hiperconscientes do facto de que, há milhares de anos, havia ali uma civilização muito poderosa, a civilização mais dominadora de todo o mundo, e de quão gloriosa deve ter sido. E agora restam apenas alguns tijolos aqui e ali, e alguém sentado nesses tijolos a comer a sua sanduíche."

Para Roma, com Amor

também toca em alguns dos temas fulcrais de Allen - as extravagâncias das celebridades, a arte no seu mais sublime e absurdo, e o prazer de uma farsa sexual à maneira dos bons velhos tempos. Mas está também imbuído com a ideia do tempo - aos ziguezagues, em colapso sobre si próprio - que Allen explorou através do conceito sobrenatural de viagem no tempo em

Meia-Noite em Paris

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"Não é apenas psicológico: quanto mais nos aproximamos da morte, mais rapidamente o tempo passa", opina Allen. "Creio que algo acontece a nível fisiológico que nos leva a experimentar o tempo de uma forma muito diferente." Quando um visitante presente na sala nota que se trata de um fenómeno estranho e que Allen conseguiu encontrar uma linguagem cinematográfica única para o expressar, ele interrompe. "É também assustador, como verão à medida que forem ficando mais velhos. Não melhora. Não ficamos mais doces ou mais calmos, não adquirimos sabedoria ou perspectiva. Começamos a sentir dores nas articulações."

No entanto, apesar de estar "deprimido em lume brando", que é como ele descreve o seu estado psicológico habitual, fala animadamente sobre as alegrias da vida: o clarinete em que pratica todos os dias ("para manter os meus níveis de estilo"), as suas duas filhas (de 12 e 13 anos) e o seu casamento com Soon-Yi, que dura há já 15 anos. Uns dias antes da nossa conversa, Ronan Farrow, o filho que teve com Mia Farrow, postou no Twitter uma mensagem venenosa: "Feliz Dia do Pai - ou, como se diz na minha família, Feliz Dia do Cunhado." Allen não quis comentar isto, declarando que não tinha visto a mensagem com os seus próprios olhos (não tem computador). "De qualquer forma, provavelmente nunca leria. Não sou uma pessoa dramática."

Mesmo assim, parece surpreendido com a raiva do seu filho, obviamente ainda em carne viva. "Sempre senti que não tinha interesse algum no que alguém pudesse pensar. Apaixonei-me por Soon-Yi e foi algo muito sério, não algo frívolo. Estamos juntos há anos, e têm sido, a nível pessoal, os melhores anos da minha vida, a sério. E também certamente os melhores da vida dela - não devido à minha brilhante personalidade. Saiu de si própria. Teve efectivamente uma oportunidade de conhecer o mundo."

Nunca mostrou os seus filmes às suas filhas. "Mostrei à mais velha, Bechet, alguns filmes do Alfred Hitchcock e mostrei a ambas um ou dois filmes dos irmãos Marx. Mas elas não estão muito interessadas... Tento encorajá-las a nível musical e guiá-las a nível de cinema, mas a minha opinião...", e abana a cabeça pesarosamente. "Eu represento o Velho Mundo, a Europa de que muitas pessoas fugiram de barco."

Lá mais para o final deste Verão, Allen vai começar a realizar a sua 44ª longa-metragem - um filme ainda sem título passado em Nova Iorque e São Francisco. Também em breve vai adaptar o argumento de Balas sobre a Broadway (que escreveu em conjunto com Douglas McGrath) para um musical da Broadway, um projecto que ficará a cargo de Susan Stroman, a realizadora de Os Produtores (2005). E continuará a seguir a mesma ética de trabalho que, para além de o ter ajudado a alcançar uma das mais duráveis e influentes carreiras no cinema norte-americano, o tem também mantido afastado de um fervilhante pânico existencial ao longo de quase meio século.

"Tenho uma perspectiva muito pessimista acerca de tudo", diz em tom banal. "Obviamente, não sou uma pessoa religiosa e não tenho qualquer respeito pelos pontos de vista religiosos. Tolero-os, mas acho-os uma forma de compreensão da vida bastante insensata. É a mesma coisa com os filósofos que nos dizem que o sentido da vida consiste no sentido que nós lhe damos. Também não aceito isso. É muito pouco satisfatório."

"No final de contas, acabamos por ficar apenas com alguns factos muito pavorosos, desagradáveis", continua. "Não os podemos evitar, não lhes podemos escapar. O melhor que podemos fazer, segundo o que consigo perceber neste momento - talvez algum dia venha a obter mais alguns conhecimentos -, é distrairmo-nos. Estou sempre a trabalhar, afogo-me em problemas triviais, problemas que não são casos de vida ou morte: "Como vou fazer com que o terceiro acto funcione?" ou "consigo que esta actriz entre no filme?" ou "será que estou a gastar mais do que o orçamento?" São estes problemas que me atormentam, por isso não fico sentado em casa a pensar no facto de o universo estar a afastar-se e a cair a uma velocidade estonteante enquanto estamos aqui calmamente sentados."

E, com isto, os olhos de Allen perscrutam-me por trás dos óculos e ele sorri de forma constrangida. Neste preciso momento, pelo menos, até ele parece notar que acaba de soar exactamente como Woody Allen.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington PostTradução de Eurico MonchiqueTexto corrigido às 12h:

retirada a referência errada a Eric Baldwin

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