O Bons Sons começou com Capitão Fausto e A Naifa e Cem Soldos está ocupada e feliz

Foto
Mitó Mendes, d'A Naifa, num dos concertos de arranque do festival Miguel Madeira

Na rua de São Sebastião, voltam a preparar-se as barracas da marroquinaria. Desde o largo do Rossio, ouvem-se os ritmos de Batida. Desde o largo da Eira, passando a Igreja, não demorarão a ouvir-se as vozes dos PAUS.

 

Ainda não chegámos ao meio-dia de sexta-feira, mas os testes de som seguem em bom ritmo. Depois do arranque com concertos de Capitão Fausto e d’A Naifa, o segundo dia de Bons Sons começa a preparar-se.

Vinda do parque de campismo começa a irromper pela aldeia gente que, na sombra das árvores e esplanadas do largo, toma o pequeno-almoço, bebe um café, arrisca uma cerveja prévia ao almoço. Pouco passa do meio-dia e Cem Soldos começa a fervilhar de actividade. Um fervilhar dolente, descontraído. Há muito tempo para aproveitar o que já cá está, que é a aldeia, e o que chegará, que são os concertos.

Depois de um início com uns incríveis monstros de palco chamados Capitão Fausto e com o fado de vistas largas, a tempo dorido e comovente, d’A Naifa, sexta-feira será um dos dias mais fortes do festival: Legendary Tigerman, António Zambujo, You Can’t Win Charlie Brown, Linda Martini, Gala Drop, Celina da Piedade – e os já referidos PAUS e Batida.

A aldeia está aberta. Ou melhor, a aldeia está fechada. O perímetro está definido, o parque de campismo ocupado, os restaurantes, bem improvisados em pátios e recantos, já funcionam, os palcos estão montados.

Ontem, o Bons Sons começou a mostra de vitalidade de uma aldeia e, através da música que a aldeia convocou, também da música feita por cá. Provaram-no os concertos e o público conhecedor e generoso nos aplausos, disposto a entusiasmar-se. Provaram-no também os momentos entre concertos. Estavam os El Náan, homens de Castilla, representantes de Espanha, país convidado nesta edição de 2012, a preparar-se para entrar em palco quando nas colunas de som no Palco Lopes Graça, o principal, se começa a ouvir a “Joana Transmontana” de B Fachada. Foi rastilho para a dança enquanto o concerto não começava.

Mais tarde, quando no mesmo local se esperava a chegada d’A Naifa, ouvir-se-ia “Os loucos estão certos”, dos Diabo na Cruz, e a reacção seria semelhante. Em Cem Soldos, a aldeia ocupada alegremente para convívio entre invasores e locais, vive-se um ambiente de celebração: é festa popular e é festival de música à séria. Velhos a seguir a melancolia d’A Naifa, novos muito novos a correr entre homens e mulheres de caneca presa no cinto – caneca Andanças: compra-se uma por dois euros e poupa-se no plástico dos copos –, a serpentear entre as ruas para chegar à saída do palco Giacometti e afagar os pachorrentos burros mirandeses que, esta tarde, andarão com gente às costas a passear pelos campos de Cem Soldos.

O Bons Sons: Eira e rock’n’roll? Boa síntese do que por aqui se passa. Confirmámo-lo ontem à tarde, no magnífico palco instalado na antiga eira, quando, depois de Nuno Prata ter inaugurado o festival e se ter lamentado de não poder ficar para o resto do evento – há concerto dos Ornatos Violeta em Paredes de Coura e o baixista, obviamente, não poderia faltar –, chegaram os Capitão Fausto. A banda que se estreou em 2011 com Gazela é hoje nada menos que um portento em concerto. Com melodias pop certeiras, ritmo ora anfetaminado (escola Vampire Weekend ou Franz Ferdinand), ora muito rock’n’roll, e um gosto nada escondido pelo psicadelismo de décadas passadas, os Capitão Fausto fizeram festins percussivos em volta do baterista, gritaram “festa latina” e saltou <i>riff prog</i> sobre ritmo de banda de baile. Convocaram a inevitável “Teresa” e a Eira, enquanto o sol brilhava alto sobre a aldeia, tornou-se centro de festa popular. Não poderíamos pedir melhor arranque para o festival. Adrenalina em alta, o dia podia continuar.

Vimos Filho da Mãe, no Palco Giacometti, instalado na intersecção entre duas ruas, tocar perante uma plateia sentada no chão, sorvendo o som daquela guitarra dedilhada com desejo de folk e com intenção rock: no sentido em que, enquanto se dobra sobre a guitarra clássica, o <i>fingerpicking</i> de Rui Carvalho é tanto melodia quanto inquietação, tanto procura conforto pastoral quanto catarse. Uma experiência intensa, mas com o seu quê de familiar. Quando começa a utilizar a <i>loop station</i> para gravar excertos de som depois enxertados em directo na música, os sons metálicos produzidos provocam reacção imediata nas mulheres atrás de nós: “Isto parece a ecografia de quando estamos grávidas”, diz uma. “É a ecografia de um Filho da Mãe”, respondem-lhe. Ecografia não será o termo exacto, mas quando o ouvimos criar ritmo de trovão (a <i>loop station</i>), quando troca a guitarra pela tambura (o largo estava cheio e estávamos longe, mas pareceu-nos uma tambura indiana), quando toca Helena aquática, um dos destaques de Palácio, o seu álbum de estreia, percebemos o quanto de íntimo tem esta música: uma placidez eivada de uma turbulência interior que dá a estes instrumentais toda a voz de que necessitam.

Depois de Filho da Mãe, os Lousy Guru voltaram a fazer do Palco Eira um cenário de festa, e os El Náan, generosos e humildes, trouxeram-nos ecos da música tradicional de Castilla transformada por espírito fusionista: saxofone e marimbas, mas também alaúdes e adufes. Cantaram sobre sereias no canal de Castilla, elogiaram o festival, Tomar e a Ibéria e foram conquistando o público que acabaria a cantar com eles para despedida. “Tá boa, hermanos!”, gritam à nossa frente.

Enquanto as ruas da aldeia continuavam ser calcorreadas por gente que procurava a sala de exposições, as cadeiras de madeira das tascas ou que, muito simplesmente, vagueava pela aldeia – a deambulação faz parte da vida neste festival –, chegou A Naifa para trazer guitarra e alma fadista a Cem Soldos. Luís Varatojo tocou sentado a guitarra portuguesa, clássico, e tocou-a de pé, com espírito rock. A Naifa faz-se desse equilíbrio entre a melancolia tradicional do fado e a energia de banda eléctrica. A maior parte das vezes, tais experiências redundam em música de mau gosto atroz. Não é este o caso. Esta depressão que me anima, uma das canções que lhes ouvimos, anima realmente. A secção rítmica de Sandra Baptista – no lugar do fundador João Aguardela, que a morte levou cedo demais em 2009 – e de Samuel Palitos, sabe como servir as canções com bom gosto, dando corpo à expressividade da voz de Mitó e dos trinados pouco canónicos de Varatojo.

“A Naifa tem todo o orgulho em estar aqui esta noite”, disse a vocalista. O público, a julgar pela reacção ao concerto e pelos vários <i>encores</i>, teve também todo o prazer em recebê-la e em seguir serenamente as canções em queda da banda: “Todo o amor do mundo não foi suficiente”, ouvimo-los, e o sentido trágico do fado revela-se nesta música que lhe retém a dor da alma mas que se transmuta em algo mais. A primeira noite acabou assim. Ou melhor, acabou algumas horas depois, após o DJ set de <i>electro-world music</i> dos Yechida.

Hoje, pela hora do almoço, no pátio adjacente ao Sport Clube Operário de Cem Soldos, toldos instalados para proteger do calor, brasas a aquecer, dispõem-se mesas e saem as primeiras entremeadas. São para quem, daí a pouco, estará a tempo inteiro atrás do balcão. “É preciso comer bem”, diz-nos o homem de rosto afogueado pelo esforço e pelo calor que ontem preparou três porcos para alimentar a “nova” população de Cem Soldos. “A noite vai ser longa”. Ontem, ficaram ali até às três da manhã. Hoje, sexta-feira, não saem dali antes das seis. O festival está montado. Não parará até domingo.

Sugerir correcção
Comentar