"Não podemos ter medo de pensar no património como um negócio"

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" temos de garantir que os museus continuam abertos, com segurança e com problemas de conservação resolvidos" Carla Rosado

Elísio Summavielle É director-geral do Património desde Fevereiro. Ex-secretário de Estado da Cultura do último Governo PS, foi muito criticado ao aceitar o cargo. Agora quer trabalhar para arrumar a casa e depois, quem sabe, candidatar-se a uma autarquia.

Por agora, Elísio Summavielle ainda tem dois gabinetes no Palácio da Ajuda, casa do secretário de Estado da Cultura, cargo que ocupou no último Governo PS, e da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), que assumiu em Fevereiro. No da ala norte, a do Património, deixou um busto da República que ainda há-de levar para o da ala sul, a dos Museus, onde já tem um fotografia de Agostinho da Silva, que lhe tirou com uma máquina descartável. "Ainda me divido entre os dois gabinetes, mas depois vou ficar aqui na ala sul, com esta janela para o Tejo, porque a DGPC há-de ser um corpo só." 
Summavielle foi nomeado para este organismo que agrupa a Direcção Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo e os antigos institutos do Património (Igespar) e dos Museus (IMC) há seis meses, mas a portaria que aprova a sua estrutura nuclear só saiu a 24 de Julho. Aos 55 anos, Summavielle, ligado ao património desde os anos 80, tem agora muito a fazer. Quer pôr as dívidas em dia, fechar mais de 300 processos de classificação de imóveis, criar um sistema de conservação preventiva para museus e monumentos e contribuir para o reforço da regionalização na Cultura. 

Militante de base do PS, diz não se deixar abalar pelos que o criticam nem se preocupa com as "teorias da conspiração" que defendem que a DGPC só foi parar às suas mãos porque é 
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Quando deixar de ser director-geral, admite candidatar-se a uma autarquia: "Dos 272 concelhos que conheço no país há pelo menos 20 onde eu não me importaria de ir a uma eleição local."


Que vantagens traz a fusão dos institutos do Património e dos Museus com a direcção de Cultura de Lisboa? Há mais de uma década que defendo que o património cultural deve ter uma gestão unívoca. É necessário que esta actividade entre no mapa da economia portuguesa, com o turismo. E isso faz-se melhor em conjunto, o que não invalida que cada área mantenha a sua autonomia disciplinar. A lógica dos quintais agravava-se com esta separação.


Está sempre a falar dessa lógica de quintais na Cultura... Falo porque ela existe e é prejudicial. O património inclui os museus, a arqueologia, a arquitectura, a documentação, o imaterial, mas deve ter uma linha de pensamento comum. Esta reforma é bem-vinda. 


Por que não tentou pô-la em prática quando era secretário de Estado da Cultura? Tentei fazê-la. Só que o XVIII Governo durou 18 meses... Quando entrou em gestão, estava a reorganizar a administração pública. A área do património ia entrar nessa reforma e os moldes eram mais ou menos estes. Esta territorializa mais a Cultura, com o reforço das direcções regionais. 


O Governo justificou esta reforma com a necessidade de optimizar recursos. Quanto é que a DGPC poupa ao Estado? Nunca me foi colocada a meta de poupar recursos. É evidente que não estamos desligados da situação que o país atravessa. Temos mil funcionários, juntando as três casas. Vamos cumprir a meta dos 2% [redução de funcionários públicos ditada pelo Governo] porque as reformas também estão a avançar. 


Os museus têm mais a ganhar com esta fusão do que os monumentos? Os museus mantêm a sua importância, que poderá vir a ser reforçada com a passagem de alguns para as direcções regionais de Cultura (DRC). A situação no IMC era grave, com um passivo que vinha sendo acumulado e que não estava a ser resolvido. 


De quanto estamos a falar? Há uma polémica [entre o Governo e o PS] à volta disso, porque se misturam orçamentos de investimento e de funcionamento. Não quero entrar nela. O que posso dizer é que há facturas que é preciso pagar. A 15 de Fevereiro [as dívidas] já andariam à volta de um milhão de euros. Se tudo correr bem, até ao final do ano que vem o passivo estará resolvido. Não podemos é entrar em delírios de actividades nos museus. 


Em 2013 vamos ter ainda menos exposições temporárias? Primeiro temos de garantir que os museus continuam abertos, com segurança e com problemas de conservação resolvidos. Depois, se possível, aumentar o número de visitantes. Se permanecessem todos na DGPC, teríamos de considerar encerrar alguns,porque a relação custo-benefício era muito deficitária. 


De que museus falamos? Não quero citar exemplos. Mas têm um número de visitantes muitíssimo reduzido. Quando assistimos ao encerramento de tribunais e centros hospitalares, há que considerar vários cenários. Felizmente, com a passagem para as DRC, não tiveram de fechar. 


Essa passagem é uma oportunidade... É. Portugal mudou muito nos últimos 15 anos. Há quadros de grande qualidade nas autarquias. Tenho dito muitas vezes que, se em 1995, 60% do investimento na Cultura era feito pelo Estado central, hoje é feito pelas autarquias. 


Em que é que se vê essa territorialização? Por exemplo, o Igespar tinha 700 projectos de avaliação por mês. Desde Abril, as autorizações para obras em zonas classificadas, à excepção do património mundial, passam pelas direcções regionais. 


Não corre o risco de haver uma interpretação desigual da lei? Não, porque há sempre uma instância de recurso, a DGPC. Há técnicos em todo o país. Temos de acabar com o complexo pombalino na Cultura, porque ele não faz sentido em 2012. Conheço 272 autarquias e vejo coisas incríveis de iniciativa local. Até museus. 


Se há tantas vantagens na fusão, por que houve tantas críticas? As reacções negativas são naturais. Há coisas que se eternizavam. Ainda não estou rendido à limitação de mandatos, mas quase. Há dirigentes excelentes que estão há muitos anos no cargo e que se modernizam, mas, de um modo geral, isso não acontece. Um dirigente deveria ter, no máximo, três mandatos [nove anos]. 


Quais são as suas três prioridades para a DGPC?
Para já, a criação de um sistema nacional de conservação preventiva para museus e monumentos. Isto para impedir que se arrastem problemas de conservação, que, depois, tornam muito cara qualquer intervenção. Outra é estabilizar tudo o que diz respeito a processos de classificação de património imóvel e móvel. A terceira das prioridades é a mais ambiciosa - caminhar para a sustentabilidade dos equipamentos e da própria DGPC. 



Isso só se consegue com o turismo?
Faz-se com várias parcerias e com rigor orçamental. É preciso pôr contas em dia. E isto é possível. Tenho a certeza de que o património cultural vai ser cada vez mais um negócio. Sei que "negócio" é um palavrão para muita gente, mas, para mim, não é. Portugal tem, felizmente, um potencial enorme nessa área. A aproximação com o turismo é crescente. Se formos comparar, em receita, o primeiro semestre de 2011 com o primeiro deste ano, monumentos e museus estão estabilizados. Não podemos ter medo de pensar no património como um negócio. Eu não tenho. 


Que orçamento prevê para 2013? 
Vai haver uma ligeira contracção. O orçamento de funcionamento da DGPC será de 31 milhões de euros (18 vêm do OE e 12,9 de receita própria, que é obviamente uma previsão), mais ou menos o mesmo que este ano. No investimento é que há uma diminuição - 6,5 milhões de euros. 


Vai ser suficiente para monumentos e museus?
Nunca é suficiente. Mas tem de haver o mínimo para alavancar uma exposição, como aconteceu com a do Machado de Castro [Museu de Arte Antiga] e a da Art Déco [Chiado]. É preciso criatividade. 


E os imóveis? Há uns meses falávamos de 550 em vias de classificação em todo o país...
Portugal tem cerca de 4500 classificados, uma densidade superior a qualquer país da Europa. Salvo o século XX, as jóias da coroa estão salvaguardadas. Em 2005, quando fui para o Ippar, havia 2400 processos para resolver, que dão uma protecção legal que não é necessariamente uma protecção efectiva...


O que é que isso quer dizer?
Que há muito património em vias de classificação, e mesmo classificado, de privados, e nós não temos dinheiro para entrar por ali e fazer obras coercivas. Temos de acudir aos que estão na mão do Estado, que são 134. 


Como é que se chegou a 2400? 

Houve aquilo a que costumo chamar uma "classifiquivite" aguda nos anos 1980, 90 e inícios dos 2000. E com uma bolinha de 50 metros à volta [Zona Especial de Protecção]. Muitos destes processos estavam mortos. Encontrei propostas que eu tinha feito nos anos 80. Neste momento, números redondos, temos 300 por resolver. No fim do ano passado, pediram-me opinião sobre uma eventual prorrogação do prazo [que termina a 31 de Dezembro], e defendi que, os que estivessem resolvidos até lá, muito bem, os que não estivessem, deveriam ser arquivados. Alguns vão caducar, é certo, mas podem ser reabertos. Entre 2006 e 2013, de 2400 passámos a 300, se destes 100 caducarem a 31 de Dezembro, não me choca. Alguns destes edifícios estão irrecuperáveis. 

Entre 31 de Dezembro e a data de reabertura, não se corre o risco de o imóvel ser arrasado?
O trabalho de avaliação está a ser feito, os prioritários estão a avançar e há muita portaria para publicação. Para os que não estarão fechados a 31 de Dezembro, é preciso criar um mecanismo de caducidade-reabertura quase simultâneo. Não se pode manter classificações anos a fio no limbo. 


Alguns destes bens "no limbo" são bastante mediáticos. O que é que se passa com o alargamento da Baixa Pombalina e com a Avenida da Liberdade, em Lisboa?
A classificação da Baixa está praticamente fechada, a da avenida tem de ser discutida, mas ela está protegida por várias ZEP [Zonas Especiais de Protecção]...


Mesmo assim, foi possível desvirtuá-la...
Há exemplos muito maus, outros menos maus e um ou dois - só um ou dois - bons. É preciso fazer um trabalho de regulamentação com as autarquias, que foi o que fizemos com Lisboa na Baixa. 


Não se passa o mesmo na Avenida da Liberdade...
Não. Nem na da República, nem nas avenidas novas. Precisamos de planos sectoriais. Isso é que é protecção efectiva. 


O da avenida vai caducar?
Neste momento, é difícil justificar a coerência da Avenida da Liberdade como conjunto. Se há alguma coerência, ela limita-se ao alcatrão. A classificação será uma redundância anacrónica...


Vai deixar cair o processo da avenida?
Não é prioritário em relação ao da Foz do Douro, no Porto, ou da própria Baixa Pombalina. A avenida está por classificar desde finais dos anos 80, mas daí para cá aconteceu lá tanta coisa...


Há muitas críticas à falta de estratégia do Governo para a Cultura. No património ela existe?
Se não existisse nesta reforma do actual secretário de Estado uma visão estratégica, eu não estaria aqui a defender a DGPC. Pelo menos no sector do património cultural não houve défice nenhum de visão estratégica, houve até uma coragem política invulgar de assumir uma dinâmica de mudança que se vinha a afirmar desde há dez anos. Quanto ao resto, não me devo pronunciar.


Porque é como técnico do património que assume o cargo?
Como um técnico com espírito crítico. Revejo-me na estratégia para o património e, muito importante politicamente, na da territorialização da cultura. 


É militante do PS. Ter dito "sim" a esta direcção trouxe-lhe problemas dentro do partido?
É claro que houve quem sentisse um certo desconforto. O meu avô materno dizia sempre "ai de quem não tem inimigos". Felizmente, tenho alguns, é sinal de que também tenho ideias. Não me preocupo muito com isso. O meu pacto com o secretário de Estado é "pôr o menino a andar". Quero arrumar esta casa, pôr as equipas no terreno, resolver passivos e, depois, voltar ao meu lugar. 


E ser do PS aqui, com um Governo PSD-CDS, é difícil?
Não sou do Governo, sou um técnico. A instrumentalização política do serviço público foi um erro, é um erro. Um director-geral deve ser de carreira. Políticos somos todos, mesmo os que têm pruridos em dizer que o são. 


Orgulha-se muito de ser militante de base...
Nunca fui outra coisa.


Mas também já disse que gostava de se candidatar a uma autarquia. Pensa nisso a sério?
Vamos lá ver em que estado saio da DGPC [risos]. A candidatura a uma câmara foi um cenário que se colocou no passado, mais do que uma vez. Recusei as autárquicas no final de 2013, por causa do que estou a fazer neste momento. Não gosto de deixar nada a meio, e não tenho esse dom feminino de fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Quando a DGPC estiver a andar, poderei pensar nisso.


Em que região gostaria de se candidatar?
Tenho uma costela minhota - Summavielle vem de Fafe. Mas tenho outra ribatejana, o meu avô materno era da Moita. Mas, no fundo, sou lisboeta e não vivo sem o mar da Ericeira. Cada vez mais, um presidente de câmara tem de ser um gestor do território, não é obrigatório que tenha nascido na terra. Dos 272 concelhos que conheço no país, há pelo menos 20 onde não me importaria de ir a uma eleição local. Daqui por seis anos, sabe-se lá...


Quando aceitou este cargo, houve muitas críticas por causa das suas filiações maçónicas. O que é que o levou a entrar para a maçonaria?
Porque, como dizem os 
maçons, sou um homem livre e de bons costumes. Tenho grande estima por figuras da maçonaria, como o Raul Rego e o Magalhães Godinho, e sou um republicano fora de época, dizem-me os amigos. Mas não tenho frequentado as sessões. Enquanto dirigente, nunca me foi colocada nenhuma questão que envolvesse a maçonaria. Quem me conhece, aliás, sabe que não sou permeável a pressões e já tive dissabores por isso, sobretudo partidários. A minha filiação maçónica é genética - sou neto de dois implantadores da República. 

Surpreendeu-o que se dissesse que a DGPC tinha ido parar às suas mãos por causa da maçonaria?
Até ouvi, pasmado, teorias de que haveria aqui uma grande conspiração maçónica com o actual secretário de Estado. Limitei-me a responder que os nossos aventais são diferentes: eu tenho um guardado, que às vezes vou buscar para cozinhar razoavelmente mal, o do secretário de Estado é de cozinha e ele é um excelente
gourmet. Só lhe conheço esse avental [risos]. Mas eu não cozinho tão bem como o Francisco José Viegas.
 

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