José deixa uma flor no metro todos os dias em nome do amor

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Desde o dia dos namorados que José deixa uma flor e uma mensagem no metro de Lisboa Rita Chantre

Há mais de dez meses que, todos os dias, uma flor viaja clandestinamente no metro de Lisboa. José propôs-se a espalhar o amor pela capital durante um ano, com flores e poesia para quem as quiser apanhar. Não falhou um único dia. E já obteve resposta.

É dia dos namorados, 14 de Fevereiro, em Lisboa. Um jovem entra num restaurante, para um “jantar de encalhados”. Gente sem namoro reunida para uma refeição cercada por casais e flores e velas e beijinhos. Sairá comprometido com o peculiar projecto de espalhar o amor pelos subterrâneos da capital, plantando diariamente flores na última carruagem do metro, linha azul, a partir de Santa Apolónia. Mas ainda não sabe.

Há uma rosa na mesa e a brincadeira dita que fique para quem estiver “encalhado” há mais tempo. José, 28 anos, denuncia-se e fica com ela. No regresso a casa, olha a alavanca que serve para accionar o sinal de alarme do metro e engendra uma brincadeira romântica para acabar o dia. Escreve uma mensagem: “Só me volto a encontrar contigo quando apanhares a flor que vai no metro da linha azul”. Envia e fica à espera.

A rosa não chega ao destinatário. Nem a segunda flor, enviada no dia seguinte, nem a terceira. Enquanto falha, mais uma vez, pensa: “Isto teria piada se fosse para toda a gente”. E é com esta reflexão que nasce a ideia de, durante um ano, plantar uma flor no sinal de alarme do metro. Uma por dia, sem falhar, endereçada a quem a encontrar. Cada flor leva um aforismo e pede resposta, por carta, “para obrigar as pessoas a parar”.

“A paixão é tremoço, o amor é azeitona”

“Perdeu-se uma coisa, ganhou-se outra”, lembra José ao PÚBLICO, relativizando a insucesso da primeira empreitada, com destinatário certo. “Estava com vontade de escrever à mão cartas de amor, bilhetes. E [esta ideia] foi um estímulo para escrever todos os dias, para fazer um exercício de escrita criativa: escrever frases de amor, definições ou não, que me surgem no dia-a-dia. Coisas patéticas como ‘A paixão é tremoço, o amor é azeitona’. E qualquer pretexto serve. As frases são inesgotáveis.”

Esta é a parte prática da história de José, que não revela o resto do nome porque considera que o seu anonimato coloca a ênfase no projecto, que designou Sinal de Alarme. O título tem uma origem absolutamente prosaica, como acontece com os aforismos: é na alavanca do sinal de alarme do metro que as flores são postas a circular por Lisboa. O conceito é construído em cima dessa mundanidade.

O mesmo acontece, por exemplo, com o destino das flores, o fim da linha azul: à vista desarmada é apenas Amadora; numa perspectiva romântica, é o “feminino de quem ama”. É isso que o Sinal de Alarme faz: transforma o quotidiano em romance e assume posições. Incluindo em momentos importantes da vida nacional, em dia de eleições, de manifestações ou greves, na declaração do fado como Património da Humanidade. “A paixão faz greves, o amor faz revoluções”, lia-se a 24 de Novembro, dia de greve geral.

É a política a imiscuir-se nos afectos. José não tem qualquer pejo em assumir o seu carácter interventivo: “O amor também é política. Claro que é. E é importantíssimo que assim seja. O amor tem de se comprometer com alguma coisa”. Mas não se fica por aí: há a questão das flores, de onde as vai apanhar. “O Banco de Portugal, na Almirante Reis, tem um canteiro fantástico. E, por uma questão de justiça social, vou deixar de as comprar e passar a levar as do Banco de Portugal. Quando estiver sem flores, eu assumo as culpas. Só tenho de ter cuidado com aquilo, que pica.”

O crime e a resposta

Santa Apolónia é uma estação terminal e os maquinistas têm de sair da cabine da carruagem que, com a mudança de direcção, se transforma na última, percorrer todo o veículo e entrar na cabine lá na outra ponta. No minuto que essa operação dura, José planta a flor no sinal de alarme e tira uma fotografia. Não pode fazer uma coisa nem outra – e sabe que está a ser vigiado, através das câmaras –, mas nunca foi incomodado.

Nem pelos responsáveis do metro, nem pelas pessoas que, sobretudo em hora de ponta, enchem a estação. “Às vezes encostam-se ao sinal e é mais complicado [pôr a flor]. De resto, não dizem nada. São poucos os curiosos que vão ver o que aquilo é”, observa. As reacções chegam-lhe sobretudo via Facebook, onde mantém uma página dedicada ao Sinal de Alarme, com fotografias de cada “crime” e com as respostas que recebe.

Foi através daquela rede social que um maquinista partilhou a fotografia de uma flor que colheu no metro. É naquela rede social que os “fãs” do Sinal de Alarme gostam, comentam e partilham as melhores frases, que ficam abismados com os desvarios proporcionados pelas bodas do projecto – a cada 50 ou 100 dias que passam, José faz acompanhar as flores de objectos estranhos, como um vaso de alface, uma camisa ou um abacaxi; na última boda, já neste mês, um bacalhau seguiu em direcção à Amadora. “A ideia é fazer sorrir as pessoas que vão para o trabalho, muitas vezes sob stress”, diz.

“O Sinal de Alarme provoca sorrisos deliciosos nas pessoas mais sisudas e sérias”, conta, revelando que nunca acompanhou uma flor durante todo o percurso. A escolta, às vezes, dura apenas duas paragens. “Não fico muito tempo. O meu papel é pôr a flor. Depois, o metro que a leve e as pessoas que façam o que quiserem.” Algumas apanham-na e nada dizem; outras enviam perguntas por e-mail; outras ainda aceitam o desafio de responder por carta. Não muitas: sete, uma das quais a partir do Canadá.

As cartas são anónimas. Faz parte das regras – afinal, são respostas a um “crime”. “As pessoas escrevem de forma mais livre, mais pura, sem se comprometerem com nada. É uma forma de desabafarem, de se conhecerem um pouco melhor. É mais para elas que para mim”, sublinha. “O acto de parar, sentar, pensar, pegar na caneta e começar a desenhar as letras é importante. O Sinal de Alarme é mesmo uma paragem. Como no Caos Calmo [filme de Antonello Grimaldi], quando o Moretti perde a mulher e passa todo aquele tempo parado, sentado no banco. É isso que faz falta. Se accionares o sinal de alarme no metro, ele pára. As cartas são isso: parar para avançar.”

“O que ando aqui a fazer?” Esta é a pergunta que José quer que as pessoas façam a elas próprias. “Só se pensa nisto quando ficamos doentes ou morre alguém. Hoje, as pessoas estão a ficar completamente soterradas”, lamenta, antes de construir uma ponte entre o quotidiano cinzento das grandes cidades e as possibilidades do amor, que “também assusta muito”.

“O que vou fazer com as cartas, não sei. Tenho de arranjar uma forma de as plantar. Não sei o que vou fazer com isto. Passado um ano gostava de ter vida”, desabafa. Entretanto, gostaria de ver o projecto contaminar outras paragens. “As pessoas seriam mais sãs. Já desafiei pessoas de outras cidades, mas não aceitaram. Porque isto tem de ser todos os dias: o amor é todos os dias. Acordas todos os dias, comes todos os dias... o amor é todos os dias. Pode estar alguém à espera e se a flor não chega...”

Sem férias

O Sinal de Alarme não falhou um único dia. E a ideia é que assim continue até 14 de Fevereiro de 2012, quando completar um ano. É o comprometimento sem mácula de que fala José e pelo qual abdicou de tudo que, ao longo deste ano, pudesse comprometer o projecto: férias e viagens, festas, funerais e aniversários, sono. “Houve um dia em que não pude mesmo, mas a flor foi lá posta por outro louco apaixonado pela poesia e o amor.”

“Tive medo de não conseguir fazer isto todos os dias. No início, era um impedimento: tinha de ir ao metro todos os dias e colocar lá a flor, estar sempre no mesmo local. Mas isto já se tornou tão rotineiro que tenho medo do que vai acontecer a 14 de Fevereiro, da desabituação. Já faz parte de mim.”

José é de Vila Nova de Famalicão. Na Páscoa, obrigou a família a descer até Lisboa, onde vive, para a refeição festiva. É assim tão sério. Mais tarde, a avó, de 88 anos, teve de viajar sozinha até à capital para matar saudades do neto, que há muito não ia à terra natal. “A minha família sabe da flor, mas não sabe que é por isso que não vou lá acima. Se souberem, internam-me. Digo que é por causa do trabalho, tenho vergonha de dizer que é pela flor. Se digo à minha avó, ela pensa que estou choné”, brinca.

“Não fui de férias, não viajei, fiquei várias vezes sem hora de almoço, gastei dinheiro em táxis, em flores. Fui a velórios, mas não a funerais”, recorda. No aniversário da mãe, fez uma “visita de médico”, de surpresa. Vai e volta todas as sextas-feiras a Braga, por causa do doutoramento na Universidade do Minho. Nunca fica no norte.

Nas últimas legislativas, a 5 de Junho, fez parte de uma mesa de voto em V.N. Famalicão, como é seu hábito. Foi e voltou no mesmo dia: chegou às 5h a casa, foi para as mesas de voto às 7h, ficou até às 19h e uma hora depois estava em Campanhã, no Porto, a apanhar o comboio para Lisboa.

É um destes ralis de transportes públicos que José está a fazer neste Natal, que foi passar a casa, com a família. A consoada é um interlúdio no frenesi do amor, antes de novo regresso a Lisboa, para não falhar. Porque “é importante fazer uma coisa todos os dias, sem falhar. Como uma mãe que vai acordar o filho todos os dias, dar-lhe um beijo, carinho. O resultado, depois, é exponencial. Se todas as pessoas escrevessem todos os dias, por exemplo, seria óptimo para os Correios. Talvez não precisassem de ser privatizados.”

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