My Beautiful Dark Twisted Fantasy

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Ele fê-lo novamente. "Power", o single, já era prenúncio de grandeza. A grandeza de um megalómano, mas, neste caso, a megalomania é permitida, desculpada e incentivada. Porque Kanye, o nosso homem, "delivers" - e não há disso melhor prova que "My Beautiful Dark Twisted Fantasy".

No single, sacou um sample de "21st schizoid man", dos King Crimson, porque, tipo atento, viu na expressão a representação perfeita daquilo que é a sua cabeça neste momento. Criador talentoso, transformou rock paranóico na base de uma maravilha hip-hop onde música de câmara, arpeggio de sintetizador, coros de uma soul pós-moderna e o verso que resume tudo, "no one man should have all that power", dão o mote ao disco. Depois de definir uma linguagem nos três primeiros álbuns (os samples de soul clássica, o uso generoso de loops de sintetizador, o "digging" nos locais mais inesperados e as vozes aceleradas até se transformarem noutra coisa) e depois de se inventar, em "808s & Heartbreak", como trovador de intimidades gélido e futurista, misturou tudo, sintetizou tudo com uma voracidade que só está ao alcance dos grandes. "My Beautiful Dark Twisted Fantasy", Kanye West, uma vez mais, a cumprir o hip-hop como expressão omnívora, verdadeira tapeçaria de expressões. Uma linha de guitarra à Funkadelic como base para "Gorgeous", samples do bucolismo dos Bon Iver, canções de ressaca neurótica com sintetizador a condizer, R & B transformado em rodopio alucinado ("All of the lights") ou um regresso vitaminado aos sons subterrâneos da década de 1980, quando o hip hop era expressão directa de rua, de clube underground e de block parties, nessa incrível "Monster": rosnar ameaçador partilhado com Justin Vernon (Bon Iver), Jay-Z e Nicki Minaj, cuja participação, qual Betty Davis em rima, quase vale um álbum inteiro. Depois disto tudo, claro, as palavras de Kanye West, que se faz rodear dos "niggas" de credibilidade impoluta (Swizz Beatz, Jay-Z ou RZA) e de estrelas pop e R & B como Elton John, Rhianna ou John Legend, para construir a sua própria narrativa. Complexo e contraditório, põe-se no topo do mundo para se atirar montanha abaixo no momento seguinte - mas está só a fazer género, que Kanye recupera sempre a postura. Fala de espiritualidade e pede perdão divino antes de confessar "guess I fell in love with a porn star [...] No more drugs for me, pussy and religion is all I need" - acontece em "Hell of a life", que tem um baixo fuzz garageiro (cortesia dos antigos Mojo Men) a liderar uma maravilha "tripada" para rockers e b-boys partilharem na pista de dança. "My Dark Twisted Fantasy" é um álbum de uma coerência e alcance impressionantes. A narrativa de um homem acossado sem pachorra para pedir desculpas. Ele foi a "abomination of Obama's nation?" Pois bem, "that's no way to start a conversation". A resposta está aqui: música onde a mestria que lhe conhecíamos se depura e complexifica como nunca antes. Rodeado de mil convidados, colocando-se no centro da acção, o megalómano Kanye West gravou o seu melhor álbum. Desbocado e controverso, iminentemente popular sem ceder na estética, Kanye West, o egocêntrico que ambiciona deixar um impacto profundo na cultura popular, despede-se pela voz de Gil Scot-Heron. E é isto que pergunta, no fim da "bela, negra e perversa fantasia" da hora anterior, a reserva moral da consciência afro-americana: "Who'll survive in America?" Kanye West está vivíssimo.

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