O “Inferno” de Strindberg a 50 vozes hoje na Culturgest

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Nuno Ferreira Santos

Como numa grande tela, de vários tons, sombras e luz, os corpos de 50 mulheres encontram o seu lugar num palco. Umas estão imóveis, outras mexem-se lentamente entre luzes que transformam o cenário. Uma a uma, vão dar diferentes vozes ao “Inferno” de August Strindberg, no novo espectáculo homónimo da encenadora Mónica Calle, que hoje estreia na Culturgest, em Lisboa.

A obra é um misto de diário, ensaio e ficção. E cada uma das mulheres do projecto de Calle corporiza um pensamento ou estado de alma do dramaturgo sueco num texto escrito entre 1896 e 1897, quando Strindberg, já de volta à Suécia depois de uma deambulação por Paris, Dieppe e Berlim, reflecte sobre as dolorosas rupturas na vida (das quais o divórcio com a segunda mulher, Siri von Essen, é o exemplo mais vívido).

Strindberg tinha 53 anos quando fez esse “corte radical com tudo na vida”, diz Mónica Calle. “O texto acaba por ser muito avassalador e atravessa tudo”, desde as grandes questões da família, da religião e da literatura, “à dimensão quotidiana das dificuldades, como o não ter dinheiro para viver o dia-a-dia”. “Inferno” reflecte ainda as dúvidas num “tentar viver de outra forma”, coincidindo com a fase em que o autor de “A Menina Júlia” decide deixar de ser dramaturgo.

“Como a vida é boa quando a névoa de uma doce embriaguez baixa o véu sobre as misérias do mundo”, diz uma mulher em palco. “Chegou a Primavera. Sinto uma tristeza de morte mas o riso alegre das raparigas que brincam, invisíveis, debaixo das árvores, toca-me o coração e desperta-me para a vida. E a vida corre, e a velhice aproxima-se; mulher, filhos, lar, tudo foi devastado. Outono por dentro, Primavera por fora”, continua outra.

“Pela forma como Strindberg escreve, em que tudo se mistura – emoção, razão e dúvidas – eu sempre achei que queria fazer este espectáculo só com mulheres”, continua Calle. “É uma escrita que sendo muito masculina acaba por ser muito feminina, ao não ter essa separação [entre o racional e o emocional]”. Essas várias vozes formam “uma ideia de um corpo” mas “a mais-valia de serem muitas pessoas é a de poderem ir para sítios diferentes”, explica.

Mónica Calle, que já no ano passado com “Esta Noite Improvisa-se”, de Pirandello, misturou espectáculo e ensaios na construção do objecto final que apresentará em palco, junta aqui actrizes profissionais e amadoras. Ao todo, o workshop e o espectáculo levam 50 mulheres a trabalhar com as actrizes Mónica Garnel e Ana Ribeiro, além da própria Mónica Calle. Todas as noites o espectáculo será diferente, porque o workshop continua a decorrer em paralelo, alterando o que se vê em palco de dia para dia. "Inferno" estreia hoje e fica até dia 8.

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