A gralha genética que aumenta o risco de enxaqueca

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Carolina Lemos tem um doutoramento sobre a epidemiologia da enxaqueca Fernando Veludo/Nfactos

Deu-lhe muitas dores de cabeça descobrir a letra trocada num gene, que aumenta o risco de enxaqueca nos portugueses? "Deu, deu! Por a caso até deu", ri-se Carolina Lemos da provocação.

Geneticista do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto, Carolina Lemos anda às voltas com os mistérios genéticos da enxaqueca há oito anos, desde que, terminada a licenciatura de Biologia, integrou uma equipa que investiga este tipo de dores de cabeça. Dois anos depois, começou a tese de doutoramento sobre a epidemiologia e genética da enxaqueca em Portugal, que concluiu no ano passado - e recentemente viu publicada uma descoberta obtida durante esse trabalho, num artigo na revista científica Archives of Neurology.

Essa descoberta é a de uma alteração no gene STX1A que aumenta o risco das formas comuns de enxaqueca. Este gene contém as instruções de fabrico de uma proteína (a sintaxina 1A) que regula a libertação de várias substâncias químicas, ou neurotransmissores, que permitem a comunicação entre os neurónios. Por causa desta função, suspeitava-se de que pudesse haver uma ligação entre o STX1A e a susceptibilidade à enxaqueca.

Para ver se seria mesmo assim, Carolina Lemos, de 31 anos, estudou 188 doentes com enxaqueca e 287 pessoas sem este problema, como grupo de controlo. De todos tinha amostras de ADN, recolhidas do sangue.

O gene já era conhecido e estava sequenciado - o que quer dizer que já se sabia a ordem por que aparecem as quatro letras do alfabeto genético ao longo desse pedacinho do ADN. Essas letras - A, T, C, G - são, na realidade, pequenas moléculas dispostas na grande molécula de ADN, enrolada no núcleo de cada célula. Todo o livro da vida é escrito com quatro letras apenas. É uma sequência específica destas letras que constitui um gene, que por sua vez é o código com as instruções para produzir uma proteína.

Letras trocadas

Por vezes no código genético há uma única letra que é trocada, como se de uma gralha se tratasse. Essa variante genética pontual pode, por exemplo, conferir maior resistência ou maior susceptibilidade a uma doença, ou proporcionar uma vantagem selectiva perante certas condições ambientais ou até nem ter qualquer papel e ser neutra.

Que variantes genéticas pontuais estariam então presentes em quem sofre das formas comuns de enxaqueca? Carolina Lemos esquadrinhou diversas variantes já assinaladas anteriormente no gene STX1A, só que agora foi à procura de ver se estariam relacionadas com a enxaqueca. Assim, nos 188 doentes e nas 287 pessoas do grupo de controlo verificou, para cada uma das variantes, a frequência de A, T, C ou G em quem tinha e em quem não tinha dores de cabeça.

Estatisticamente, encontrou numa das variantes uma letra que surge mais vezes do que outra: "É o G que aparece em maior número de vezes nos doentes com enxaqueca, em vez do T, que é comum na maior parte da população."

Escrevendo no alfabeto dos genes, enquanto quem sofre das formas comuns de enxaqueca apresenta, a certa altura, a sequência GGG CTGC CCG, quem não sofre tem a GTG CTGC CCG.

Esta é uma novidade absoluta, pois para este gene nunca tinha sido feita uma associação entre a troca do T pelo G e a enxaqueca.

Mas no artigo científico, em que Carolina Lemos é a primeira de oito autores, quer do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, quer do Hospital de Santo António, também no Porto, confirma-se ainda a existência na população portuguesa de outra variante genética que confere risco acrescido de enxaqueca. A relação desta outra gralha genética com as dores de cabeça já tinha sido estabelecida no ano passado por uma equipa liderada pela Universidade de Barcelona, e agora a equipa do Porto verificou que também se encontra nos portugueses. Neste caso, numa dada posição do gene aparece mais um T em vez de um C.

"As duas variantes estão presentes numa frequência maior nos doentes com enxaqueca do que no grupo de controlo, o que parece indicar que estão relacionadas com a susceptibilidade à enxaqueca", sublinha a geneticista, acrescentando que esse risco é cerca de duas vezes superior.

"Não quer dizer que as pessoas que têm estas variantes vão desenvolver enxaquecas. O que aumenta é o risco."

Factores ambientais, como perturbações do ritmo do sono e alguns alimentos, como queijos, café, chocolate ou vinho, podem desencadear as crises das formas comuns de enxaqueca, que é uma doença complexa. A começar pelo facto de nas formas comuns (com e sem aura) poder haver vários genes envolvidos, em que cada um contribui para aumentar o risco de ter a doença.

Nas formas com aura, antes da dor de cabeça podem surgir fenómenos visuais (como estrelinhas, luzes, riscos, vista enevoada) ou sensitivos, como formigueiro nos membros inferiores ou superiores de um dos lados do corpo. No entanto, a forma mais frequente é a sem aura, em que ocorre só a dor de cabeça.

Com ou sem aura, as crises são acompanhadas de náuseas, vómitos ou intolerância à luz e ao ruído. Em Portugal, esta doença atinge 16 por cento da população, segundo um estudo na região do Porto - valores semelhantes aos encontrados no mundo.

Para chegar às letras trocadas foi preciso muito trabalho, primeiro na selecção do grupo de controlo, depois na bancada do laboratório às voltas com o ADN, depois ainda em frente ao computador em análises estatísticas. "Exige muitas horas de trabalho, muitas confirmações." O mais complicado foi o grupo de controlo, que tem de ser comparável à amostra de doentes, por exemplo, ter a mesma proporção de homens e mulheres - daí as dores de cabeça que a procura das letras trocadas deu a Carolina Lemos. Foi chato? "Chato não. Gosto imenso deste tipo de estudos. Laborioso foi, mas vale a pena, é recompensador."

Em busca de medicamentos

Agora a equipa tenciona passar de um olhar mais centrado na estatística para um mais virado para a biologia: utilizando células, a ideia é fazer experiências que revelem o papel biológico das variantes genéticas e por que razão contribuem para aumentar o risco de enxaqueca. Será que estão a fazer com que o gene STX1A origine a produção de mais ou menos quantidade da proteína sintaxina 1A? Será que a proteína é menos funcional? "Temos de perceber se a troca de uma letra leva a que a proteína actue de maneira diferente."

Até esta descoberta se traduzir num medicamento que alivie as crises de enxaqueca vai demorar bastante tempo. As gralhas neste gene são apenas mais um alvo a investigar rumo a esse objectivo, sublinha a investigadora. Aliás, ainda nem sequer foi identificado um gene que seja o responsável total pela enxaqueca: "Apenas se encontraram genes que conferem um risco aumentado para a doença, tal como este do nosso trabalho."

Ter, no entanto, um conhecimento profundo dos mecanismos da enxaqueca pode permitir o desenvolvimento de novos tratamentos. "Os medicamentos não são cem por cento eficazes. Se se conhecer o perfil genético dos doentes, e que há grupos com maior risco onde existem variantes genéticas com maior frequência, e se conhecermos bem o papel destas variantes, poderemos chegar a avanços que conjugam a farmacologia e a genética."

Pela sua parte, Carolina Lemos está a dar uma contribuição. Mas se a investigação da enxaqueca surgiu por mero acaso na vida dela, a escolha de uma carreira dedicada à ciência já não. "Sempre quis entrar em biologia. As ciências da vida permitem conhecer o que nos rodeia, as doenças e do que somos feitos, e a genética ainda permite mais isso."

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