Não é bem um festival de música, é a experiência Sudoeste

Domingo viu-se um óptimo concerto de Beirut, uns Air amorfos e uns Massive Attack que, sem surpresas, entusiasmaram. 41 mil pessoas no último dia do Sudoeste 2010, aquele em que a música passou a ser definitivamente apenas uma parte da equação. Como diz o slogan desta edição: “Queres ver ou queres viver?”

 Zach Condon, o mentor dos Beirut
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Zach Condon, o mentor dos Beirut Miguel Madeira
Os Massive Attack mantiveram preso o público que sobrava da enchente Wailers
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Os Massive Attack mantiveram preso o público que sobrava da enchente Wailers Miguel Madeira

Beirut sobrelotou e maravilhou o Palco Planeta Sudoeste e os Massive Attack, sem surpresas, entusiasmaram. Carminho encantou pela voz cheia e descontracção e trouxe fado ao crepúsculo. Os Air foram os Air, no seu psicadelismo de designer, e Mike Patton mostrou-se crooner ora divertido, ora comovido com os mil “amore” da música italiana da década de 1960. 41 mil pessoas domingo, na última noite de Sudoeste, segundo números da organização.

Hoje em dia acontecem coisas estranhas no Sudoeste, o festival que se instalou em 1997 na Herdade da Casa Branca, Zambujeira do Mar. No ano passado, os Faith No More tinham trazido até ali uma multidão da velha guarda de 1990, preparada para celebrar Mike Patton e comparsas. Domingo, na noite de encerramento da edição de 2010, o vocalista está em palco, acompanhado pela orquestra do Algarve e músicos italianos (incluindo alguns da banda de Vinicio Capossela), e canta épicos românticos da romântica música italiana da década de 1960. São os Mondo Cane e Patton, na sua camisa branca e no cabelo lambido penteado para trás, qual personagem dos Sopranos, canta um quase “cha cha cha” com congas e orquestração opulenta e lança um prolongado “solo per te”. Entre boa “chungaria” digna de festival da canção alternativo, cavalgadas rítmicas inesperadas e canções de charme em modo “wall of sound”, Patton gritará “Mãos! Mãos!” e o público em número razoável frente ao palco principal saltará e sorrirá e sim, erguerá as mãos e oferecerá palmas a esta declaração e amor e ironia ao cancioneiro italiano. A visão teve algo de surreal? Naturalmente. E mais surreal se tornou quando, entre o público, enquanto Patton corrói as canções com guinchos de terror cartoonesco, vemos passear-se um homem de bom porte carregando às cavalitas um urso de peluche gigante. Que nada nos surpreenda. No Sudoeste é assim que se vive.

Há concertos e há tudo o resto, sem uma escala de prioridades definida. Entre a montanha russa e o “Downloader”, um elevador sensorial que víramos antes no Rock In Rio, sempre com fila ordenada, entre o desejo de pôr a conversa em dia com os amigos do campismo e participar nos inúmeros e intrusivos passatempos dos patrocinadores, o Sudoeste já não é exactamente um festival de música. É um festival com música, que o público na sua maioria adolescente aproveita como gigantesco parque de diversões e vive com o entusiasmo adequado à libertação por uns dias do poder parental. Foi portanto surpreendente ver como, no final do concerto de Mondo Cane, milhares no outro extremo do recinto lotavam o Palco Planeta Sudoeste, esperando com grande expectativa a chegada da próximo banda.

Enquanto avançávamos até lá, alguém explicava a uma amiga o que se seguiria: “Não é bem Kusturica, mas é quase”. Realmente, não foi bem Kusturica, mas teve fliscorne, o instrumento preferencial de Zach Condon, o mentor dos Beirut, teve trompete, ukelele e a espaços algo de fanfarra balcânico-mexicana. O segredo dos Beirut é a forma como conjugam sensibilidade de cantor indie – o timbre de Condon, próximo do de Andrew Bird, ajuda – com sons adaptados de outras proveniências. Um “indie world music” onde a pop se cobre de exotismo de uma forma harmoniosa, sem exibicionismos, e que o público adora: conhece cada melodia dos sopros (erguiam-se aplausos sempre que Condon soprava o fliscorne) e cada letra, que entoava em coro. Nem o som dos baixos que começaram a invadir o palco, vindos do Palco Positive Vibes, o palco reggae, causou mossa. Com a pose de um pequeno Chet Baker ainda sem excessos (fliscorne sobre o ombro e cabeça inclinada enquanto cantava), Zach Condon deu o melhor concerto da última noite do Sudoeste. Acompanhado de acordeonista, trompetista, percussionista e baixista (alternado o baixo eléctrico com o contrabaixo), arriscou umas palavras de português, reconheceu um par de caras de uma viagem de comboio recente (esteve uma semana a viajar por Portugal), cantou “Elephant gun”, cantou a melancolia de “Nantes”, tocou instrumentais com mariachi mexicano nas redondezas, soprou melodias vindas do Oriente e, entre mil palmas e mil aplausos, compensou largamente o cancelamento dos dois concertos anteriormente marcadas para Portugal.

Domingo, apenas assistimos a semelhante euforia ao fim da tarde, quando Carminho levou fado ao crepúsculo. Euforia em muito menor escala que a do concerto de Beirut, que no Sudoeste o público só começa a chegar ao recinto com a noite avançada (a praia tão perto, o campismo ali ao lado). Seriam então não mais de uma centena de pessoas, mas fizeram a festa que Carminho lhes ofereceu. Elegante no vestido preto (“ela deve estar a destilar ali dentro!”, exclamava alguém perante a evidência de que sim, estava um calor sufocante), mostrou-se fadista de corpo inteiro, gerindo na perfeição a dinâmica do concerto: a força de “Alfama”, o protagonismo cedido aos músicos e às guitarradas, a festa castiça de “A velha tendinha”, celebrizada por Hermínia Silva, o tom comovente da “Bia de Alfama”. Carminho cantou e encantou, Carminho acolheu palmas festivaleiras e saltou quando o público lhe pediu que saltasse. Talentosa, graciosa e sorridente, deu um grande concerto íntimo num festival onde tal é uma raridade.

Wailers e Massive Attack

Dizíamos então que, além de Beirut, apenas assistimos a verdadeira euforia em dois momentos. No concerto de Carminho, em pequena escala, e, mais tarde, em escala “mas de onde é que saiu esta gente toda?”, quando os Wailers chamaram tanto público ao sempre preenchido palco reggae quanto os Massive Attack ao palco principal. “Olha só puto!”, grita um puto a outro quando chega “No woman no cry”. Não há Bob Marley, mas há a face de Bob Marley projectada nos ecrãs e há os êxitos todos, cantados por todos, tocados com precisão de banda de “covers” competente: foi como que uma versão 3D de “Legend”, a compilação que mitificou comercialmente Bob Marley. E, portanto, um concerto perfeito para um público que não tem tempo para descobertas e se entrega à segurança do que já conhece.

Não é por isso de estranhar que o psicadelismo planante dos Air, a meio caminho entre a herança dos Kraftwerk e dos Pink Floyd tenha sido recebido com alguma indiferença. Um matulão travestido num vestido revelador destacava-se entre o público mas nem ele, homem dado à festa e à rebaldaria, a julgar pela indumentária, parecia muito entusiasmado. Aos próprios Air, como tem acontecido nas últimas passagens por Portugal, parecia faltar uma qualquer chama que insuflasse vida às canções. Elegantes como sempre, foram cantores de charme inspirados nos Roxy Music de “Avalon” (“Love”), arrancaram em ritmo motorika em “Don’t be light” e até lançaram uma boa piada (“querem cantar connosco?”, perguntaram em voz cómica filtrada por vocoder, antes de tocaram “Alpha beta gaga”, canção com assobio mas sem letra). Contudo, faltou-lhes sempre rasgo e intenção, mesmo quando no final, provocaram finalmente alguma reacção com as óbvias “Kelly watch the stars” e “Chaval, é o ‘Sexy boy’”, como acentuou um rapaz que, então sim, se entregou ao hedonismo de braços abertos.

Os Massive Attack não sofreram da mesma indiferença que os franceses. A sua música densa, sinistra e hipnótica, onde confluem dub e hip hop, sintetizadores ambientais e riffs de rock convulsivo, bem como o cenário de palco, repleto de flashes, de números e dados disparados caoticamente, mantiveram preso o público que sobrava da enchente Wailers. Não foi um concerto surpreendente, não foi cenário para novidades, mas revelou uma violenta e assinalável qualidade onírica (entre o pesadelo neurótico e a ruidosa catarse).

Com Horace Andy como guru fantasmagórico e Martina Topley-Bird (que actuara à tarde no Palco Planeta Sudoeste) a cantar uma “Teardrop” despida, minimal; com passagens pelo presente (“Girl I love you”, do recente “Heligoland”) e recuos ao passado (ouviu-se “Angel”, não se ouviu “Karmacoma”), a banda de Robert Del Naja e Daddy G apresentou-se como conjunto de veteranos decididos a fazer do seu legado uma relevância no presente. Pouco depois, quando David Guetta se preparava para subir a palco e fazer a sua festa muito veraneante, muito inofensiva, ainda havia gente a entrar no recinto.

O Sudoeste aproximava-se do fim. No ano em que o slogan do festival assumiu claramente uma ideia – “queres ver ou queres viver?” -, no ano em que o cartaz foi ao encontro a esse conceito, eliminando o risco da equação e apostando numa salgalhada de “valores seguros” e num conjunto de animações, sempre patrocinados por uma qualquer marca, de que a música era apenas mais uma, não há grandes destaques a fazer.

O Sudoeste foi um festival pioneiro. Actualmente, assume-se como evento de massas que apresenta o seu nome, a praia próxima e as “good vibes” adolescentes como chamariz principal. Antes ia-se ao Sudoeste para ver os Portishead. Agora vai-se ao Sudoeste para ir ao Sudoeste.

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