Mestre Américo: "Vários tipos de poder" impediram que mais se tenham sentado no banco dos réus

O mestre Américo, que durante décadas ensinou relojoaria na Casa Pia, lamentou hoje a ingerência de "vários tipos de poder" no processo Casa Pia, que terá impedido que “muitos culpados” se tenham sentado no banco dos réus neste julgamento, cuja sentença se aproxima.

“Há entraves enormes à investigação e à instrução de um processo como este”, disse Américo Henriques em entrevista à agência Lusa, sublinhando que não culpa “nem a Polícia Judiciária, nem o Mistério Público, nem a instrução”.

“São muros que se criam que, às vezes, por mais que as pessoas os queiram derrubar, são impossíveis de derrubar”, disse, referindo-se a “outras formas de poderes, instituídos na sociedade portuguesa e não só, que criam verdadeiras barreiras à investigação de processos como este”.

Segundo mestre Américo, “não foi só o poder político actual", pois "há muitos outros poderes - políticos ou não - que se levantaram e actuaram para proteger os seus membros”.

Questionado sobre se a maçonaria foi um desses poderes, mestre Américo disse: “É este tipo de poderes. Não é só a maçonaria. Há outros”.

A poucos dias da leitura da sentença do caso Casa Pia, marcada para 05 de Agosto, mestre Américo vive “grande ansiedade” e é por isso que não estará presente no tribunal.

“A ansiedade é tal que prefiro estar sossegado no meu lar e seguir estes trâmites finais do processo que, contudo, não irá terminar aqui”, disse.

Apesar de achar que muitos culpados ficaram “de fora”, espera justiça, embora acredite que esta nunca será suficiente para as vítimas: “Não há justiça possível para o que sofreram e o que foram obrigadas a reviver”.

Américo Henriques, o casapiano que se tornou mestre de relojoaria e que durante anos denunciou os abusos de Carlos Silvino, ex-motorista, sobre as crianças na instituição, já não trabalha na Casa Pia. Reformou-se.

Em 2002, quando uma reportagem revelou os abusos sexuais nos colégios da Cada Pia de Lisboa, mestre Américo foi uma das caras da denúncia. A sua ira foi contra Silvino, um dos acusados que no próximo dia 05 conhecerá a sentença, mas também para outros.

Sobre este acusado, reconhece que “permitiu que a investigação fosse mais longe”. Uma colaboração que não justifica, na sua opinião, que este não pague pelo que fez.

“Os crimes do Carlos Silvino são por demais hediondos para que não seja condenado. Mas que não seja o único”, advertiu.

Mestre Américo lamenta a morosidade do processo que, acredita, “teve graves consequências” nas vítimas e no próprio processo.

“Acho que é algo intencional. Os advogados de defesa dos acusados, ao procurarem, através de todas as artimanhas possíveis, embora legais, arrastar o processo, conseguiram que as pessoas se cansassem do caso e até que se esquecessem dele”, disse.

Mas este prolongamento teve outras consequências, principalmente nas vítimas: “Foram obrigadas, ao longo de todos estes anos, a viver e a reviver os abusos e isso é traumático”.

Mais uma razão para desejar que, “havendo vítimas, também haja culpados”.

Para mestre Américo, as vítimas viram, pelo menos, uma coisa reconhecida: que não mentiram.

Sobre o presente nos colégios da Casa Pia de Lisboa, diz ser “impossível assegurar que não há abusos sexuais”.

Reestruturação "arrasou" ensino e alunos poderão deixar de ter emprego

O mestre Américo diz que o ensino técnico profissional na instituição foi “arrasado” e garante que as vítimas desta reestruturação serão os alunos, que poderão ter mais dificuldade em encontrar trabalho.

“Um dos maiores baluartes da Casa Pia – que era o seu ensino técnico profissional – foi arrasado”, disse em entrevista à agência Lusa mestre Américo Henriques, durante décadas responsável pelo ensino da relojoaria no Colégio Pina Manique, em Lisboa.

Esta especialidade foi, durante décadas, uma das mais reconhecidas e os seus formandos constantemente solicitados por grandes empresas, nomeadamente suíças.

A mudança chegou após o escândalo de pedofilia na Casa Pia e, com ela, os cursos técnico profissionais da instituição passaram a ter “a mesma qualidade dos outros” que são ministrados em Portugal.

“Ao abdicar de uma portaria própria que regulamentava os seus cursos, e a seguir um modelo do Ministério da Educação, a Casa Pia nivelou os seus cursos - que eram reconhecidamente melhores que a grande maioria dos cursos que se ministram neste país - por baixo”, disse.

Actualmente, a Casa Pia segue o modelo geral (baseado no Decreto-lei 74/2004) que, para o mestre Américo, é “um plano de estudos muito incipiente, do ponto de vista da valia das competências técnicas e profissionais, que os alunos da Casa Pia podiam antes adquirir e agora não podem, até porque não têm tempo para isso”.

O especialista em relojoaria explica que “o plano de estudos de um curso técnico profissional prevê hoje, para a componente de formação técnica, 1600 horas no total, das quais 420 para formação em contexto de trabalho”.

“Isso quer dizer que os alunos de relojoaria vão trabalhar com uma formação de 1180 horas, o que é ridículo”, disse.

“Isto não é ensino, é quase uma brincadeira”, afirmou, acrescentando que esta foi a principal razão para ter abandonado a instituição onde se formou e formou milhares de alunos.

“Foi por isso que, depois de explicar às instâncias superiores que aquele esquema não servia as necessidades de formação de relojoaria, e não só, me aposentei, pois vi que não conseguia ajudar a dar a volta”, explicou.

“Se ficasse, tornava-me conivente com um processo que condeno em absoluto”, adiantou.

Mestre Américo lembra que, antes desta reestruturação, os formandos recebiam mais do dobro do tempo e exemplifica as suas angústias: “O número de horas com que hoje atribuem o título de técnico de relojoaria é o que, há uns anos, dava um título de aprendiz de relojoeiro”.

“Não se podem fazer milagres”, até porque “a relojoaria implica um processo de aquisição de competências ao nível da micromotricidade, que é lento, moroso, tem de ser progressivo e que para o qual hoje não há tempo que chegue, de maneira nenhuma”.

Mestre Américo lamenta que “as maiores vítimas” desta reestruturação no ensino técnico profissional da Casa Pia sejam os formandos.

“Eles [os alunos] são os primeiros enganados, mas o mercado do trabalho não se consegue enganar por muito tempo”, disse.

O mestre receia que os alunos da Casa Pia - que “hoje já não têm de maneira nenhuma a formação técnica que antes tinham” – comecem a não ser aceites no mercado de trabalho.

“A formação sempre foi o baluarte da Casa Pia de Lisboa. Hoje, acabou, foi arrasada”, acusou.

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