"Ouvi um tango na rádio e comecei a rodar, num pé só"

Foto
Matilde Rosa Araújo Miguel Madeira

Os amigos mais novos dizem: "É como se ela tivesse a nossa idade." Mas ela lembra-se de Sebastião da Gama, a chegar da Arrábida. De David Mourão-Ferreira, no restaurante Pedrisco, em Lisboa. De José Régio, na Pensão Vinte e Um, em Portalegre. Estreou-se com uma ficção para adultos e escreveu mais de 20 livros para crianças. Este mês recebe um prémio carreira.

A história do tango não acabou lá muito bem. "Estava sentada no sofá, ouvi um tango na rádio, levantei-me e comecei a rodar, como a papoila, num pé só. Caí e parti a perna." Isto aconteceu porque Matilde Rosa Araújo gosta muito de música e "o tango é uma música muito física". E aconteceu ia ela fazer 80 anos. Agora está com 82.

Bem tinham dito amigos com menos 20 anos, como os escritores Alice Vieira ("Quando estamos com ela, é como se tivesse a nossa idade") ou José Jorge Letria ("Ela tem sempre a idade dos amigos mais novos"). Ambos falam no "sentido de humor finíssimo" de Matilde Rosa Araújo - e, palavra, por palavra, é exactamente o que também diz dela José António Gomes, professor da Escola Superior de Educação do Porto e autor de uma tese de mestrado parcialmente dedicada à obra desta mulher que a Sociedade Portuguesa de Autores vai homenagear dentro de dias com um prémio carreira. A cerimónia inclui uma mensagem do Presidente da República, Jorge Sampaio.

Matilde Rosa Araújo publicou mais de 20 livros de poesia e narrativa para crianças, além de livros para adultos. Continua a viver na casa que era dos pais, um silencioso segundo andar de luz velada por cortinas brancas, cristais, livros e bonecas, perto do Parque Eduardo VII, em Lisboa.

Estava à nossa espera junto ao elevador e ainda mal nos tínhamos sentado já oferecia chocolates.

Matilde Rosa Araújo nasceu no último dia da Primavera, 20 de Junho, em 1921. A casa da infância tinha "árvores, água, patos, andorinhas, uma vaca, um burro, estufa de plantas" - uma quinta, pois, no tempo em que Benfica era campo, perto do Jardim Zoológico. A família da mãe tinha origens, galegas, o pai (comerciante de ourivesaria) vinha de Monção. Havia uma irmã mais velha e uma irmã mais nova. "Eu estou no meio, sem ser a virtude..." Havia alguns livros, "não muitos", Júlio Dinis, Eça, que ela foi lendo.

"O que me encantava eram os jornais, gostava muito de os ver chegar, ainda hoje tenho uma avidez pêlos jornais." Não foi à escola, teve mestres privados, começando pela professora primária, "D. Joana Vassalo e Silva, irmã de D. Maria Lamas". Quase completou o curso de Piano ("Só não fiz o último ano") com o professor Campos Coelho.

Aos 18 anos a família mudou-se para o centro de Lisboa e ela entrou em Românicas na Faculdadede Letras. "Foi um deslumbramento, uma alegria." Colegas? Maria de Lurdes Belchior, Sebastião da Gama, Luís Filipe Lindley Cintra, Luísa Dacosta, DavidMourão-Ferreira, Helena Cidade Moura, Urbano Tavares Rodrigues, Maria Judite de Carvalho...

Professores? Jacinto do Prado Coelho, Vitorino Nemésio, Hernâni Cidade, Vitorino Magalhães Godinho...

Por onde começar? Sebastião da Gama, três anos mais novo, vindo da Arrábida? "O meu grande amigo e companheiro. Era uma dádiva. Aparecia sempre com a sua boinita, um cravinho encarnado, a dar beijos a todos...

Tinha um amor à vida, aos outros! Baixinho, os olhos piscos, sempre com espírito crítico e muita graça. Chegava à faculdade e dizia: 'Vejam a coisa mais linda!' E mostrava um poema que tinha feito na camionete ou no barco." Matilde chegou a passear com ele e a noiva, Joana, na Arrábida. "Era um irmão." Trocavam poemas. "Não fazíamos propriamente tertúlia, encontrávamo-nos na pastelaria O Beijinho da Infância, ao cimo das escadinhas da Arrochela." Isto, no tempo em que junto à Faculdade de Letras ainda se ouviam burros, "porque havia uma casa onde iam as lavadeiras com os burros".

David Mourão-Ferreira "era um encanto, gentilíssimo" e Lindley Cintra "seria o 'grand prince'", tinha "uma vocação musical muito marcada, era um homem cultíssimo e bom, um grande aluno e depois um grande professor".

"Também escrevia poemas, ainda tive alguns." O par Urbano-Maria Judite: "Assisti àquele enamoramento, os olhos verdes da Judite a olharem para o Urbano..." As aulas de Literatura Portuguesa de Jacinto Prado Coelho ("a quem devo tanto"). As de Nemésio: "Começo tinham, e depois voavam por todo o lado." A descoberta dos poetas: "Camões, Cesário, Rimbaud, Baudelaire... Tenho um retraio dele no escritório, olhava para ele como para um amigo." E Cervantes, Gil Vicente, Tolstoi, Tagore. "Foi um tempo de luz." Escrevia, já? "Uns papelinhos, que ficavam comigo." Até que um dia não ficaram, e isso foi antes de acabar a faculdade. Para o concurso Procura-se Um Novelista, do jornal "O Século", Matilde Rosa Araújo enviou "uma história muito triste, de eutanásia, uma mulher que vê o marido caminhar para a morte e que o mata... no fundo uma história de amor". Aquilino Ribeiro estava no júri.

"Ganhei", diz ela, abrindo as mãos, como se não soubesse como. Assim foi publicada em 1943 "A Garrana", a sua obra de estreia.

Saída da faculdade em 1945, Matilde Rosa Araújo começa a dar aulas de Português e Francês no ensino técnico, ou seja, a meninos sem origem nem destino de desafogo. Fez o estágio na Veiga Beirão de Lisboa, com Sebastião da Gama, e depois andou provisória por Barreiro, Almada, Portalegre, Eivas, Leiria, Caldas, até ficar efectiva no Porto e voltar a Lisboa.

Nisto, passaram.-se anos. E nunca alugou ou comprou um espaço seu. Manteve morada na casa dos pais em Lisboa, para onde voltava aos fins-de-semana. "Não foi duro. Os alunos apareciam, e aprendi tanto com eles, ou julgo que aprendi... a vida, a descoberta da infância, a dor da juventude." Fala como se não as tivesse vivido? "Enquanto as vivi, não as sabia ler." É desta experiência que vem o primeiro livro para crianças, "O Livro da Tila", de 1957, e a sua sequência, "O Cantar da Tila", dez anos depois, com ilustrações de Maria Keil.

"Estava no Alentejo quando escrevi 'O Livro da Tila'. Escrevia no comboio." Entre Lisboa e Portalegre. "Em Portalegre conheci o José Régio. Embora alguns o pudessem achar um misantropo, a ele só devo a condescendência de um grande poeta que tentava ouvir uma professora que tinha ido parar àquela terra. Eu estava hospedada na Pensão Vinte e Um, da D.

Rosalina Vinte e Um, uma senhora encantadora que sabia os nomes de todas as flores daquela serra de S. Mamede que ardeu o ano passado... Ver essa serra à noite com os pirilampos era irreal... Foi no jardim da D. Rosalina que ouvi pela primeira vez, um rouxinol. O José Régio ia lá almoçar." A seguir ao primeiro livro, continuou.

"Escrevia muito à noite, nos intervalos, no café." Em 1950, David Mourão-Ferreira e António Manuel Couto Viana fundam a revista "Távola Redonda", uma alternativa ao programa neorealista. Matilde, como Sebastião da Gama e Luís Amaro, colabora. "Reuniamo-nos no Pedrisco, um restaurantezinho na Alvares Cabral." Mas tal como colabora na "Távola Redonda", e na sua sucessora, a "Graal", também participa na "Seara Nova".

Politicamente, estava à esquerda. "Julgo que sim, sempre", responde ela abrindo as mãos, como uma evidência.

E steve sempre do lado certo, jcontra o fascismo", diz José António Gomes, autor da tese "A Poesia na Literatura para a Infância - A produção portuguesa do pós-guerra à actualidade e o caso de Matilde Rosa Araújo" (edição Asa).

Destaca, na poesia, "O Livro de Tila" — cujos poemas foram musicados por Lopes Graça — e "O Cantar de Tila", Tila é como os amigos tratavam Matilde, e, se no primeiro a Tila ainda é pequena, no segundo é uma adolescente a descobrir o amor e o desejo. "Há ali por detrás algumas alusões a alguma relação um pouco difícil com uns pais que a preservaram das 'ameaças' do amor." Realça ainda "Segredos e Brincadeiras" (2000, o mais recente), e na prosa "O Palhaço Verde" (1962) e "O Sol e o Menino dos Pés Frios" (1972).

Próxima dos neo-realistas na dedicação às crianças mais pobres, mas "sem os amanhãs que cantam" do projecto ideológico, por outro lado sensível à "arte pela arte" da clássica "Távola Redonda", Matilde Rosa Araújo soube ser transversal, diz José António Gomes.

"Não conheço ninguém que alguma vez tenha dito uma palavra contra ela. Ê de uma grande atenção aos outros, de uma enorme doçura." Também pelo seu trabalho nas escolas, pelas antologias de literatura que fez, relembra este professor, Matilde Rosa Araújo foi "uma espécie de mãe da literatura infantil em Portugal" — o pai fora o Aquilino do "Romance da Raposa".

Além da sensibilidade feminina que trouxe, há uma outra característica: "A poesia dela é franciscana, na relação com a natureza, os animais, os frutos, as estrelas. A forma quase fantástica como animiza todo esse universo distingue-a dos lugares-comuns de algum neorealismo. E há uma mitificação dainfância, como o lugar onde repousa o futuro do mundo." Encontros de perto ou de longe, teve-os Matilde Rosa Araújo à direita como à esquerda, e para todos tem palavras de admiração.

José Gomes Ferreira: "Conheci-o muito bem. Eu achava que ele era a poesia que falava." Carlos de Oliveira: "Um homem extraordinário, de uma integridade mental e poética." Sophia de Mello Breyner: "Nunca fomos íntimas, fui duas ou três vezes a casa dela. Achei-a sempre uma grande personagem poética." Eugênio, Jorge de Sena, Herberto, um respeito à distância. Ruy Belo, próximo: "Fomos mesmos amigos. Era um poeta verdadeiro. Havia nele uma pureza. Quase que um pairar na vida." E Ferreira de Castro, o autor de "A Selva", que agora sobressai na estante desta sala, numa imponente edição.

"Foi um grande amigo que acho que hoje está muito esquecido... Aquela criança que foi da sua terra trabalhar para a Amazónia e teve o desejo de aprender, de se ilustrar..." Matilde Rosa Araújo pertencia à direcção da Sociedade Portuguesa de Escritores quando, em 1965, esta instituição premiou o angolano Luandino Vieira, então preso no Tarrafal. A Pide invadiu a sede e demitiu toda a direcção. "Dói-me ainda. Telefonaram-me a dizer que a Pide tinha destruído tudo..." No 25 de Abril ficou em casa, mas no 1° de Maio de 1974 passou pela manifestação do Porto. "Vivi sempre com uma serenidade." Não foi pessoalmente incomodada nem antes nem depois da revolução, diz. E nunca pensou deixar de ser professora. "Talvez não me sentisse com o estatuto de escritora. E gostava muito de dar aulas." Não casou, nem teve filhos. "Julgo que não foi uma escolha. Ter um filho, um lar, deve ser maravilhoso, mas não aconteceu. Nunca pensei encerrar capítulos, estive sempre aberta para a vida, portanto não ia fechar esse. Mas não aconteceu." Partilha o casarão em que estamos com a irmã, Maria Luísa. Os pais morreram há cerca de 20 anos, altura em que se reformou, sem deixar de visitar escolas. Conhece Portugal inteiro, com ilhas. "Venho feliz, renovada." Só parou quando aconteceu "o ataque".

É como ela chama, com doce ironia, ao que lhe aconteceu em Novembro: na Avenida da Liberdade uma mulher roubou-lhe a mala por esticão e arrastou-a. Fez várias fracturas e esteve dois meses internada. Ainda está a fazer fisioterapia.

De resto, lê, ouve música (ainda não está pronta para um novo tango), fala com os amigos, escreve cartas e tem "uns contos e uns poemas para adultos" na gaveta.

"Pode ser que ainda haja um dialuminoso e eu perca o medo de mexer no computador."

Sugerir correcção
Comentar