As probabilidades estão do lado de Darwin

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Charles Darwin elaborou a teoria da evolução no século XIX Daniel Rocha

A vida tem um antepassado comum? Sim. Dizem a teoria da evolução no século XIX, a genética do século XX e a estatística de hoje.

Há poucos dias Craig Venter mostrou ter sintetizado um genoma artificial, que foi introduzido dentro de uma célula bacteriana, e foi capaz de desencadear o movimento da vida. Bravo. Mas o código genético que utilizou não foi inventado por ele. É partilhado por todos os organismos da Terra, tem pelo menos 3,5 mil milhões de anos, e une-nos desde sempre, apesar de só termos tido consciência disso no século XIX, quando Charles Darwin se lembrou de desenhar no seu caderno de apontamentos a primeira árvore evolutiva e escreveu por cima “I think”.

O evolucionista pensou, desenhou, teorizou. Adeus criacionismo e Adão e Eva, adeus teoria da geração espontânea. Olá evolução e primos chimpanzés. Ao longo do século XIX e XX a evolução continuou a ganhar argumentos. A demonstração das características hereditárias que Gregor Mendel fez com as ervilhas, a descoberta da cadeia dupla de ADN e a conclusão de que o código genético é quase universal, ou seja, que os organismos usam o mesmo dicionário para traduzir a informação que está no ADN para as proteínas, confirmaram o que a teoria de Darwin previa.

“Todos os seres orgânicos que alguma vez viveram nesta Terra descendem de uma forma primordial”, está escrito no livro A Origem das Espécies do naturalista. Mas a estatística nunca tinha posto as probabilidades a favor da forma primordial – o antepassado comum universal. Era demasiado complexo. Há 15 dias isto mudou. Um artigo publicado na revista Nature, escrito pelo bioquímico Douglas Theobald, ofereceu à evolução a prova estatística de que há muito, muito tempo, uma população de células deu origem a toda a vida que se conhece.

Três domínios

“Todas as provas clássicas para a existência de um antepassado comum são qualitativas e estão assentes em características parecidas”, explicou o investigador que trabalha na Universidade de Brandeis, em Massachusetts, nos Estados Unidos, citado pela revista Scientific American. Apesar de se assumir que as características genéticas parecidas são fruto de uma ligação evolutiva, a natureza apresenta inúmeros casos de adaptação semelhante de espécies que estão afastadas, como plantas que desenvolvem espinhos em regiões diferentes do mundo por estarem sujeitas ao mesmo clima quente e seco. Este fenómeno pode ocorrer a um nível microscópico, como duas proteínas com estruturas semelhantes por terem a mesma função. É necessário a estatística para dar uma prova quantitativa.

Para isso o investigador teve que comparar os três domínios da vida: os eukaryota, o grupo dos organismos com células com núcleos, que inclui organismos unicelulares, plantas, fungos e animais; os bacteria, unicelulares sem núcleo, alguns causam doenças; e os archaea, o último domínio a ser descoberto, também formado por unicelulares sem núcleo, muito diferentes das bactérias e que estão mais próximos dos eukaryota.

Theobald focou-se em quatro espécies de cada domínio (12 no total). O Homem, a levedura, o bacilo da tuberculose e o Archaeoglobus fulgidus – um archaea que vive em fontes hidrotermais – foram alguns dos utilizados. O investigador escolheu 23 proteínas muito conservadas, esticou estas proteínas para identificar cada sequência de aminoácidos e comparou cada sequência entre as 12 espécies.

Por serem muito conservadas “todas estas proteínas apresentam provas de remontarem a um único antepassado”, explicou por e-mail ao P2 David Penny, co-autor de um comentário sobre a descoberta publicado na mesma revista. “Theobald comparou estatisticamente a probabilidade de haver um único antepassado versus a probabilidade de haver mais”, explicou o matemático da Nova Zelândia. O resultado foi avassalador: a existência de um antepassado comum é 10 elevado a 2860 vezes mais provável do que mais do que um.

“Nunca houve uma demonstração formal desta hipótese”, confirmou por telefone ao P2 Manuel Santos, que lidera o laboratório de biologia do ARN (ácido ribonucleico, responsável pela síntese de proteínas da célula e que funciona como um tradutor directo do ADN) na Universidade de Aveiro. Mas há mais.

A origem

Desde a década de 1980 que se descobriu um fenómeno chamado “transferência lateral de genes”: a passagem de genes de um organismo de uma espécie para outro que não pertence à mesma espécie. O fenómeno está enraizado nos unicelulares como as bactérias, foi sendo cada vez mais descrito e para alguns investigadores põe em causa a árvore da vida de Darwin.

“Os organismos evoluem a partir dos organismos pré-existentes por origem de mudanças nos genes que já existem. Se os genes começam a ser transferidos de uma espécie para a outra, o genoma torna-se numa espécie de mosaico, depois é muito difícil traçar o antepassado comum”, explica o português. Apesar da transferência lateral de genes se tornar incipiente nos organismos mais complexos, durante mais de dois mil milhões de anos só existiu vida unicelular na Terra. Mesmo assim, Theobald introduziu este fenómeno nos testes que fez e obteve um resultado ainda mais robusto que confirma a existência deste antepassado.

Como é que esta população surgiu? “Vamos supor que a vida se originou várias vezes em vários lugares. Caso tenha sido assim, a teoria explica que ocorreu um afunilamento durante a evolução, com os descendentes de uma das linhagens que surgiu independentemente a sobreviverem até ao presente”, disse em comunicado Theobald. Todas as outras linhagens terão desaparecido.

A outra hipótese é mais complexa. “Em alternativa, populações separadas podem ter-se fundido, ao trocarem genes suficientes ao longo do tempo e tornaram-se numa única espécie que acabou por ser o antepassado de todos nós.” De ambas as formas, a vida que se conhece está toda relacionada, mesmo que seja “artificial”, como a que Craig Venter produziu.

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