Portugal deve preocupar-se com a máfia? Roberto Saviano acha que sim

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Saviano vive há três anos num limbo: "Estás vivo, mas tens uma aura de morte à tua volta" Reuters/Alessandro Garofalo

Roberto Saviano, jornalista e escritor italiano perseguido pela máfia depois de ter escrito, aos 26 anos, o best-seller Gomorra, considera que Portugal não está imune ao crime organizado com origem em Itália e tem de estar atento ao narcotráfico e outros negócios ilegais, numa altura em que aumentou a vigilância nos portos de Espanha.

"É preciso ter cuidado porque o problema está a tornar-se grave. Hoje, o perigo está no facto de as costas espanholas andarem mais vigiadas, o que leva os traficantes a entrar por Portugal. A sociedade portuguesa não sente este problema como seu, mas eles também passam por cá", disse, lembrando que "investigações italianas localizaram aqui muitos investimentos mafiosos feitos com dinheiro branqueado".

Saviano, que denunciou no seu livro os negócios da máfia italiana e foi depois disso ameaçado de morte por diversas vezes, esteve ontem em Santa Maria da Feira a abordar o tema Máfias e Mercado Global. E fê-lo sem qualquer restrição, num discurso frontal, com Portugal a entrar naturalmente na sua intervenção.

"Não sou especialista no crime português, mas há uma certa facilidade de trânsito em certos portos portugueses", vincou o escritor napolitano, nascido em 1979. "Toda a droga que passa em Portugal e Espanha foi, muito possivelmente, comprada por cartéis de droga italianos. Aqui [em Portugal] não matam, não há sangue, e então os governos ficam muito distraídos em relação a estas questões." A lei fica também à margem, uma vez que não há uma jurisprudência contra a máfia. "Há crimes parecidos, mas não existe o crime de pertencer a uma associação mafiosa."

Saviano recuou no tempo, até aos anos 80, para lembrar o assassinato de um dos mais importantes chefes da máfia italiana de então, numa cabine telefónica em Cascais. "Portugal foi um parceiro geográfico desse clã, escondiam-se aqui, branqueavam dinheiro, mas a vizinha Espanha tornou toda a Península Ibérica numa espécie de paraíso para os investimentos."

Sem sair do mesmo território, o escritor considera que os dois países escapam a determinados negócios. Mas convém manter os olhos bem abertos. "Portugal gosta muito da sua relação com as ex-colónias, mas alguém fala do que se está a passar? O golpe na Guiné foi apoiado pelos traficantes. África está a ser colonizada pelos traficantes. Por que é que tudo isto não se tornou num problema diário para a comunidade europeia?"

Indiferença europeia

Dois mercados, dois negócios: o petróleo e a cocaína. "Ignorar isto significa que não se percebe o que está a acontecer", garante Saviano, que lamenta a ausência de estruturas criadas à escala europeia para analisar as redes do crime organizado.

O escritor considera que Gomorra mostra que a Itália quer ser diferente. "Falar das contradições do nosso país significa resistir. Ter escrito um livro significa dar poder à palavra e a palavra mete medo às organizações criminosas, aos políticos, ao poder."

"Como é que um homem assim pode meter medo a uma organização tão poderosa?" A pergunta é de Saviano e surgiu logo no início da sua exposição de ontem, quase como antecipação do que a plateia, num auditório de 200 lugares quase cheio, estaria a pensar. A resposta é imediata.

"A máfia não tem medo de mim, tem medo dos meus leitores, que são cerca de três milhões só em Itália." Gomorra tornou-se um best-seller. "As vendas do livro, que apareceu na televisão, teve atenção das capas dos jornais, amarrou a atenção das pessoas, tudo isto provocou este incómodo." Saviano passou a viver num limbo. "Estás vivo, mas tens uma aura de morte à tua volta."

Christian Poveda, jornalista e autor de um documentário sobre a máfia de El Salvador, assassinado no início deste mês, entrou também no discurso de Saviano. "Quem fala dos poderes é destruído: ou é denegrido ou é morto."

A história do padre da sua terra também foi recordada. "Fez algo único e raro: disse que não se pode ser padre sem denunciar organizações criminosas." Foi assassinado. "Por uma questão de honra e vingança falei dele no meu livro."

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