O humor flamengo no seu melhor

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Johan de Moor Rui Gaudêncio

É autor de histórias aos quadradinhos – Gaspard de la Nuit e La Vache Pi são obras-primas lamentavelmente inéditas em Portugal – e, nos últimos anos, também desenhador de imprensa. Nasceu em 1953 no seio de uma família flamenga com grande tradição na banda desenhada (Bob De Moor, o pai, foi colaborador de Hergé e Jacobs e tem obra própria) e faz do humor a sua “arma secreta”. Anuncia o regresso com uma autobiografia, a publicar em 2009.

Está fora da banda desenhada há alguns anos. Para quando está previsto o seu regresso?

Assinei um bom contrato para realizar a autobiografia de um autor, em banda desenhada – desenvolver 50 anos do trabalho de alguém, procurando dar resposta à questão de como é que se torna autor de BD. O livro vai sair em 2009. Poderei falar de tudo, de Bruxelas, do meu pai, da minha vida... A ideia é usar uma mistura de estilos à moda de La Vache e de Gaspard [criações do autor]. No contexto de uma obra de autor posso permitir-me essa solução. Na verdade, aborreço-me quando recorro a soluções clássicas e gosto muito de inovar – aceito sem problemas o desafio de trabalhar em algo de novo ao nível da planificação e da paginação, por exemplo. Isso faz parte do meu carácter.

La Vache, a última série realizada, terminou de vez?

Sim. Depois do afundamento da editora Casterman ainda saíram dois álbuns na Lombard. A personagem La Vache Pi era muito complexa, mesmo se é verdade que não falava muito. Não é uma criatura optimista, que se limite a recolher os cacos que os outros animais ou o homem fazem. No último livro da série defendia-se a tese que o homem é estúpido e se autodestrói. Há uma espécie de cave-museu onde estão depositadas todas as provas de que todos os grandes pensadores, filósofos, artistas e sei eu lá que mais eram... bovinos. É uma visão apocalíptica. Ainda comecei, mas a seguir Stephen Desberg iniciou Le Dernier Livre de la Jungle, inspirado na obra de Kypling. É uma série em registo realista, que não me interessa muito, apesar de ainda ter desenhado duas histórias. Aquele género é muito estruturado, com códigos que compreendo, mas que são muito diferentes dos que estou habituado a desenvolver. Ou seja, não há muito espaço de liberdade para uma recriação pessoal do argumento. Não me sentia em simbiose com a minha “loucura gráfica”. Apercebi-me que estava num impasse, pois comprometera-me com um projecto que não me agradava. Tinha a impressão de estar a andar em circuito fechado... Foi quando decidi parar. Fiz muita ilustração desde então.

O que é preciso para ser um bom cartoonista?

Trabalho para diários, o que exige um training especial com os textos. Investi nisso e cheguei a ganhar o prémio para o melhor desenho de imprensa da Bélgica. Como o cartoon é feito por uma ou duas imagens, é necessário concentrar, sintetizar um acontecimento. É um pouco como o trabalho do jornalista, que tem de sintetizar a informação disponível. Mas é fascinante! O que digo sempre a mim próprio é: “Não sejas estúpido!”. E ainda que aquilo que faço me faça rir ou chame a atenção de um dos meus filhos, que passa e comenta... Mas o meu grande juiz sou eu próprio.

A perfeição devia existirE na banda desenhada?

É diferente. Pode trabalhar-se num quadradinho durante um dia e no seguinte durante uma hora... E depois vem alguém que, perante o quadradinho que levou uma hora a fazer, diz que é uma obra-prima, porque é mais gráfico ou outra coisa qualquer! É normal. Quando já se anda nisto há muitos anos, é necessário manter sempre a calma e estar descontraído, sem cair na tentação de forçar as coisas. Cada autor tem o seu próprio código de leitura e de desenho e é necessário não o violentar. Mas o mais provável é que eu ponha demasiadas questões, pois já vi muita coisa desde pequeno, quando o meu pai trabalhava, ou com outros criadores. Para mim, a perfeição devia existir. O meu pai costumava dizer que ninguém devia ter de trabalhar desta maneira; um jovem autor com 25 anos, que começa a editar, não tem este background de experiência – porque se devem desenhar os personagens desta ou daquela forma, como se ordenam os quadradinhos, etc., coisas que eu já compreendia aos 12 anos. Ora, é necessário descodificar isso depois e não nos preocuparmos demasiado com o processo. Eu via o meu pai fazer tudo isso e é bem verdade que tudo o que se passa na juventude marca depois o adulto.

No começo de tudo esteve a continuação das peripécias de Quick e Flupke.

Sim. Deu-me a possibilidade de entrar pela porta grande na banda desenhada e constituiu também uma grande escola prosseguir a obra de Hergé, mesmo sendo uma série de segunda linha.

Depois surgiu Gaspard de la Nuit. O ambiente é dos contos dos irmãos Grimm e as histórias parecem contadas por artistas flamengos...

É verdade. O que sempre disseram aos flamengos foi que estivessem calados. A Bélgica, e em particular a Flandres, foi invadida por toda a gente desde a Idade Média – foram os espanhóis, os austro-húngaros, os alemães, os franceses, os holandeses, os austríacos, em suma, sempre ocupantes, que mandavam calar os locais. Por isso, como não podiam comunicar, só havia uma solução: fechar a janela, puxar por uma folha de papel e desenhar. Isso ninguém podia proibir. É um pequeno povo com uma cultura pictórica e gráfica que não vale nada, historicamente sem prestígio. Mas os flamengos são bons desenhadores, grande pintores, sempre com um notável sentido de humor – o cartoon flamengo é muito forte e pesado, nada tendo a ver com a natureza soft do humor do Reino Unido. Ora, Gaspard é um pouco a continuação desse desenhador flamengo a quem mandaram estar calado – eu próprio e Desberg estivemos num colégio de jesuítas e passei por isso, convivendo com gente antipática, severa e repressora dos jovens que pode ser encontrada nas pranchas da série. Não tínhamos forçosamente de falar de nós mas, como dizia Hemingway, das coisas que conhecíamos. É o caso.

Ambientes de Brueghel, inquietude de BoschAlém disso, há a atmosfera mágica e misteriosa da narrativa.

Como desenhador de banda desenhada, aspiro a contar coisas que vi ou que creio ter visto. No que diz respeito ao universo onírico, se há mundos mágicos e fantásticos, esta é a minha visão desses mundos – mas que é flamenga –, tirados dos ambientes das telas de Brueghel ou da inquietude de Bosch, que é a referência absoluta. As personagens da história são retiradas de gravuras de Brueghel, embora transformadas em banda desenhada.

A série teve bom acolhimento fora da Flandres?

Os leitores franceses adoraram.

Porque decidiu fazer de uma vaca um herói de banda desenhada?

Ora, é maternal!... Por causa do leite. A ideia veio de Gaspard. Tínhamos feito uns desenhos que estavam vivos e Stephen reparou que eu tinha desenhado no último álbum uma pequena vaca que corria. Jean-Paul Mougin, chefe de redacção de (À Suivre) e Didier Platteau, director literário da Casterman, tinham-me convidado para fazer alguma coisa para a revista. Stephen Desberg avançou com a ideia de uma vaca que era agente secreto. Nessa noite passava um filme de Humphrey Bogart na televisão e decidi vesti-la com uma gabardina e um chapéu. A seguir veio a ideia de África, continente que eu não conhecia.

Como é que as colagens se encaixam nisso tudo?

Bem, era preciso desenhar a savana, as árvores, a cor da terra, e dar ambiente africano à personagem. Ao desfolhar uma revista dei por mim a constatar que não valia a pena cansar-me a desenhar tudo isso quando podia cortar imagens e colá-las na história, quase como se fosse um teatro de marionetas. Nada mal, como resultado... E foi assim que as colagens se transformaram numa espécie de novo código e as pessoas começaram a inundar-me com livros antigos, dos anos 40 e 50, com quantidades inimagináveis de imagens retro. Não sou coleccionador, mas tenho uma biblioteca com centenas de livros antigos, que retalhei a torto e a direito. Agora, quando faço uma prancha e não meto colagens os leitores lamentam. Quando o recurso se torna sistemático é de desconfiar...

O que era seu e de Desberg no trabalho conjunto?

Havia uma simbiose. Ele fornecia o texto, reuníamo-nos duas ou três vezes e depois era comigo. Num álbum de 46 páginas ele não fazia mais do que duas ou três observações, eu alterava o que havia a mudar e ficava tudo bem.

Tendo como pai um nome grande da BD, e sendo um autor consagrado, imagina-se a fazer outra coisa que não a BD ou a ilustração?

Eu gostaria de ter sido pintor, gravador, um grande artista, para estar acima do pai, que fazia BD, uma coisa para crianças, que é popular, má e tudo isso (mas que eu adorava!)... É normal. Acabei por constatar que aquilo que sobretudo gostava de fazer era contar histórias, embora não seja argumentista – contando a desenhar ou desenhando a contar, pouco importa. Mesmo quando fazia gravura ou linografia, desenhava quadradinhos...

As exigências dos leitoresPode-se colocar a questão de outra forma: nunca se sente cansado do que faz?

Nos anos 50, Hergé teve uma grande depressão e deixou de trabalhar durante bastante tempo. Os leitores começaram a protestar, primeiro com bons modos, mas depois de forma mais insistente. Passadas algumas semanas, Hergé respondeu com um pequeno texto, muito curioso e revelador de uma grande humildade, que foi publicado na revista Tintin. Diz que os leitores não sabem o que é ser um autor de banda desenhada e tudo o que é preciso fazer – ir aos locais, tomar notas, fazer esboços, escrever a sinopse e os diálogos, desenhar, etc., Assim, a certa altura fica-se cansado, acrescentava de forma muito educada e contida. Claro que é uma atitude justificativa, muito judaico-cristã, de aceitação de uma culpabilidade, mas não deixa de ser uma excelente revelação do que é ser um autor de bandas desenhadas. Conheço outros casos de colegas de profissão que passam por momentos difíceis e que, por vezes, não recuperam. Cauvin, por exemplo, responde com interjeições quando lhe pedem um desenho. Paul Cuvelier, que era amigo do meu pai e eu ainda conheci, era uma pessoa muito depressiva. Franquin era fantástico no trato, mas tinha períodos terríveis em que se metia num quarto escuro e ficava muito longe de tudo. Quem é que nunca passou por um momento de vazio, farto de passar o tempo a dar, dar e dar ainda outra vez?... Um autor tem o direito de parar quando fica farto, tal como tem o direito de continuar a trabalhar enquanto o desejar.

Porque é o humor tão importante na sua vida?

A base do riso é o sentido de humor. Isso permite-me não ficar preso no tempo e no espaço. Com o código do humor podemos passar rapidamente para outra realidade, solucionar no argumento coisas que devem ser fluidas num registo realista. Dou-lhe um exemplo que não é meu – no filme A Vida de Brian, dos Monty Phyton, há um momento em que os personagens são escravos e vão ser vendidos. Como não conseguem sair da situação que criaram, fazem aparecer um disco voador com marcianos para resolver o problema... Toda a gente aceita isso, acha um piadão e o enredo continua. Comigo também é assim. Sem perda de respeito pelo leitor, o registo de humor permite-me fazer coisas que de outra forma não seriam possíveis. A única excepção é Gaspard de la Nuit, que remete para o meu interesse pela gravura, Bosch, Brueghel...

Os leitores reagem bem a isso?

Sim, sobretudo em La Vache, mas também em Gaspard. Havia leitores adultos que me diziam ter lido a série quando eram adolescentes, tinham borbulhas e dificuldades de relacionamento com as raparigas. Confessavam que se tinham sentido muito bem depois de ler as histórias.

Uma das características das suas histórias é que falam de coisas dramáticas com muito sentido de humor, como se fossem contadas às crianças...

Os temas podem ser muito pesados, sim, mas a forma, pelo contrário... Creio que isso é influência do cartoon, mas também um pouco característico da BD belga tradicional, que assimilei de alguma forma – sobretudo Willy Vandersteen, em Bob et Bobette – contando coisas actuais. O meu privilégio é ter editores que acham interessante o que faço.

Humor contra o conformismoComo vê o seu próprio trabalho no quadro da banda desenhada franco-belga?

Eu gosto de muitas coisas que se fazem hoje. Esta profissão está muito associada ao comércio e é necessário estar vigilante quanto a isso. Faço o que quero, é uma opção e é a minha vida, mas sei muito bem que, mesmo fazendo o melhor, vou agradar a uns e desagradar a outros, que preferirão uma boa história de Largo Winch. Não tem problema. Depois do 11 de Setembro, alguém decretou que a banda desenhada dos anos 2000 devia ser séria e toda a gente estava obrigada a fazer histórias sérias e tradicionais para dar segurança às pessoas. Comecei a pensar nisso, talvez demasiado, mas não recuperei a minha liberdade.

Mas ganhou-a com o desenho de imprensa...

Sim, mas o que eu queria dizer é que as pessoas reagem de forma cada vez mais conformista e os cartoonistas europeus têm que andar com muito cuidado – e não estou a falar dos desenhos sobre Maomé, mas de uma forma geral. Por exemplo, no pico da crise financeira internacional, fiz uma piada anunciando que as pessoas iam retirar as suas economias dos bancos de esperma. As reacções na Net não se fizeram esperar – que não se deve brincar com as pessoas que trabalham no sector bancário!... Não é que eu me autocensure, mas há dez anos podia fazer o que queria. Hoje, assistimos a debates de hora e meia na televisão para saber se podemos rir de tudo – excepto dos deficientes, claro. Por mim, eu digo que sim, podemos rir de tudo excepto de mim... Posso estar enganado, mas tenho a impressão que as pessoas já não têm vontade de rir.

E assim voltamos, uma vez, mais ao humor como opção pessoal.

Deixei de trabalhar com Desberg porque ele se virou para a banda desenhada realista, desenvolvendo assuntos como o dinheiro, os Estados Unidos, as seitas, etc. São temas que o apaixonam desde que o conheço e que já tinha há mais de 15 anos na cabeça. Aliás, alguns pontos estavam presentes nas últimas histórias de La Vache – os mistérios da humanidade, o dinheiro, etc. Para mim, o humor é uma maneira extraordinária de poder filtrar a realidade, mesmo no caso do humor para crianças. É o caso de Zep [criador da série Titeuf], por exemplo, que desdramatiza completamente as relações com os amigos, os colegas de escola, os pais, na rua... Creio que isso esteve sempre presente na história da humanidade.

Frequenta muito o meio da BD? Dá-se com camaradas de profissão?

Bruxelas é uma cidade onde há um autor de BD por cada dez metros quadrados, 40 livrarias especializadas, o Museu da BD, dezenas de murais... Enfim, estamos condenados a encontrar autores, editores e livreiros. Até há meia dúzia de anos ainda havia os contactos dos festivais, mas parei com isso quando vi Philippe Geluck com filas de dezenas de leitores nas sessões de autógrafos enquanto eu tinha dois ou três... O meu ego ficou em estado de choque e achei por bem evitar essas emoções fortes.Imagino que quando sair a autobiografia terei de voltar às sessões de dedicatórias, por respeito ao editor e aos leitores.

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