Autoras afirmam que "Novas Cartas Portuguesas" é um "livro mal-amado" em Portugal

"Putas ou lésbicas, tanto nos faz que nos nomeiem, desde que se lute e não se perca"/"Chegou a hora de dizer basta. E formarmos um bloco com os nossos corpos". (in "Novas Cartas Portuguesas")

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A ideia de uma obra a três mãos surgiu na sequência da apreensão de um livro de poemas de Maria Teresa Horta (na foto) DR

As escritoras Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, duas das autoras das "Novas Cartas Portuguesas", consideram que a obra que escandalizou o regime marcelista, e que foi abraçada pelo movimento feminista internacional, continua a ser um "livro mal-amado" em Portugal.

Duas das mulheres que ficaram conhecidas como "as três Marias" concordam que o livro tem sido pouco estudado e valorizado do ponto de vista artístico, como objecto literário, sendo antes frequentemente realçadas as suas intervenções política e feminista. Isto apesar de se tratar de um livro "escrito a três mãos" — até hoje não se sabe quem escreveu o quê, porque as autoras decidiram ocultar a autoria dos textos —, o que era "uma novidade" em 1972, realça Velho da Costa.

Durante uma mesa redonda realizada ontem no Hotel Zurique, em Lisboa, no âmbito do seminário evocativo do I Congresso Feminista e da Educação em Portugal, que decorre até amanhã no auditório da Reitoria da Universidade Nova e aborda vários temas ligados aos direitos das mulheres e à igualdade de género, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa (Maria Isabel Barreno, a outra autora das "Novas Cartas Portuguesas" esteve ausente, por se encontrar em Paris) revelaram uma enorme cumplicidade, que só pode ter quem partilhou uma experiência literária intensa, que durou exactamente o tempo de uma gestação: nove meses.

Durante esse período, recordou Teresa Horta (mais dada aos pormenores do que Velho da Costa), as três escritoras encontravam-se uma vez por semana, distribuíam cópias dos textos escritos (sem determinações prévias), liam-nos em voz alta, discutiam-nos e avançavam assim na obra. Acima de tudo, riam-se e divertiam-se muito com aquilo tudo, que não era mais, diz Teresa Horta, do que "trepar à árvore dos meninos". "É um livro muito incómodo, ainda hoje, para os homens portugueses, porque nos portámos muito mal", brinca.

No entanto, as "Novas Cartas Portuguesas" despertam nas escritoras "sentimentos contraditórios", nas palavras de Velho da Costa, a quem as outras conhecem por Fátima. Isto porque foi considerado um livro-escândalo, que levou o regime marcelista a apreendê-lo e a acusar as suas autoras de pornografia e de ofensas à moral vigente. Na sequência, "as três Marias" foram inquiridas, proibidas de saírem do país sem autorização e quase condenadas, não fosse o 25 de Abril de 1974. Mais do que tudo, explicou Velho da Costa, foi a humilhação que as magoou, ao serem interrogadas pelo mesmo inspector que inquiria as prostitutas, ao serem "convidadas" a denunciar as outras, sob promessas de esquecimento da sua autoria por parte das autoridades.

Ao mesmo tempo, a obra é hoje objecto de estudo recorrente, principalmente no estrangeiro, levando as autoras a recordarem tudo o que se passou vezes sem conta. Reconhecendo que a realização da obra foi uma experiência que marcou a sua forma de estar na vida e de fazer literatura, Velho da Costa não esconde que ela também é "uma espécie de sorvedouro para trás", que afasta uma atenção mais cuidada aos trabalhos posteriores das três escritoras. "É como quando se encontra uma mulher aos 40 anos, ainda interessante — o que não é o [meu] caso —, e se lhe diz: 'o que tu eras aos 16!'", compara a Prémio Camões 2003. E foi ainda mais longe, comparando o livro com um parto, cuja dor se tenta depois esquecer. O que não quer dizer que não tenha sido "uma experiência de trabalho artístico e literário da qual ainda hoje" se orgulha e que lhe deu "pistas para o trabalho futuro".

Mais expansiva, Teresa Horta rememorou os pormenores do processo judicial a que foram sujeitas as autoras, com o humor de 30 anos volvidos (faz exactamente esta sexta-feira) sobre a sentença, os mesmos da revolução que, crêem, as salvou de uma humilhação maior. Admitindo que o livro é "um acto de desobediência claro", a poeta realçou, no entanto, que nenhuma das autoras estabeleceu como objectivo fixo e definido criticar isto ou aquilo nem disse "vamos escrever um livro feminista". "Não tínhamos projecto nenhum em especial a não ser dizer de Portugal, das mulheres e de nós", explica Teresa Horta.

Certo é que a obra começou a ser elaborada na sequência da apreensão do livro de Teresa Horta "Minha Senhora de Mim", porque acharam que "se uma fazia tanto barulho, o que fariam três...". Também pretenderam, evidentemente, abordar a situação do país, concretamente a condição feminina. No entanto, recusa que as "Novas Cartas Portuguesas" sejam um panfleto ou um manifesto, porque nem sempre estes são literatura e a obra é, para ela e na essência, "um feito literário".

"As mulheres é que a receberam e a tornaram feminista", afirma. Na sequência do processo judicial, as autoras enviaram as "Novas Cartas Portuguesas" para algumas escritoras feministas, entre as quais Simone de Beauvoir, que lhe deram uma enorme projecção, solidarizando-se com as camaradas e organizando marchas de protesto contra a sentença que lhes foi imposta. Esta "solidariedade feminina" surpreendeu Teresa Horta, educada com a ideia de que as mulheres se odeiam mutuamente e só os homens é que praticam a camaradagem.

A mesa redonda de ontem contou ainda com a presença de Maria de Lourdes Pintasilgo, autora do prefácio da terceira edição das "Novas Cartas Portuguesas", que entretanto a editora D. Quixote fez desaparecer "sem justificações". A obra das "três Marias" é "um livro de cabeceira" da ex-primeira-ministra portuguesa, a única mulher que ocupou tal cargo.

Recordando a frase emblemática do livro que diz que "se a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto", Pintasilgo brincou, com um humor que a idade só contribuiu para afinar: "Muitos dos nossos marialvas políticos têm sentido isso em relação a mim".

Lamentando a situação actual das mulheres e a falta de militância feminista, a engenheira de formação não tem dúvidas em dizer que se vive "uma fase de retrocesso" no movimento social das mulheres pela igualdade de género. Passados tantos anos de luta, "é como levar um murro na cabeça" quando se apercebe que a sociedade, afinal, só é "aparentemente mais livre". "As mulheres contribuem para as novas formas de opressão", aceitando ser distribuídas e consumidas — "só falta dizer os nomes dos supermercados [onde podem ser compradas]".

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