Votar com medo

Não vale a pena ter dúvidas: este foi um atentado com absoluta intenção de interferir na escolha dos franceses, já de si a mais atípica e imprevisível da V República.

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1. Domingo, os franceses vão votar com medo. Com um medo palpável que é impossível de combater até com o mais sincero e racional incentivo à coragem e à resistência. Não é a dimensão do atentado. São as imagens que ele gera e a lembrança dos outros, que o precederam. A França tem sido castigada, mais do que qualquer outro país europeu, nos últimos dois anos. Há nomes que se acumulam na memória. Charlie Hebdo, Bataclan, Nice, Louvre, Orly. Agora, os Champs Élysées. O Arco do Triunfo para o qual a França converge, no simbolismo das suas grandes avenidas, esteve visível horas e horas a fio perante o mundo inteiro, iluminado pelas luzes da polícia e das ambulâncias. Foi testemunha das pessoas que correram à procura de um abrigo. Imutável no seu simbolismo, a dois dias apenas da votação que deverá escolher o novo Presidente da França. Não vale a pena ter dúvidas: este foi um atentado com absoluta intenção de interferir na escolha dos franceses, já de si a mais atípica e imprevisível da V República. Com consequências que ultrapassam as fronteiras da França e que atingem o coração da União Europeia. Não interessa o número de vítimas. Interessa a mensagem do medo e o “cenário de guerra” montado no centro de Paris, na mais emblemática das suas avenidas. “No caso do terrorismo, o medo é o essencial, com uma desproporção assustadora entre a força efectiva dos terroristas e o medo que eles conseguem inspirar”, escrevia o historiador israelita Yuval Noah Harari, no dia seguinte aos atentados de Bruxelas.

2. Também não vale a pena dizer que o que aconteceu não terá consequências no voto dos franceses. Tê-las-á sem sombra de dúvida, mesmo que apenas possamos especular sobre os seus efeitos no voto. Le Pen lembrou em directo que ela é a única que quer fechar as fronteiras. A quem? Tal como aconteceu na maior parte dos atentados na Europa, o seu autor é um cidadão francês. Devia estar preso, acrescenta Le Pen. Não é verdade. A polícia não pode prender nem controlar todos aqueles que coloca sob vigilância, o que não põe em causa a sua eficácia. As forças de segurança europeias têm conseguido impedir os atentados da dimensão dos que atingiram Nova Iorque, Madrid ou Londres na década passada, que implicavam engenhos explosivos ou aviões transformados em bombas gigantescas, e exigiam alguma (ou muita) preparação logística. Estes, com escassa logística e armas “caseiras”, são muito mais difíceis de antecipar. Basta um “lobo solitário”, o roubo de uma camioneta, o fanatismo suficiente para obedecer às ordens.

2. O problema é que cada atentado recupera o medo interior, a desconfiança crescente em relação ao outro, aquele que Le Pen não se cansa de apontar como o culpado desta guerra aos valores da França, obrigando outros candidatos a ceder demasiadas vezes ao seu discurso. É este efeito de contágio que pode ser mais devastador. E é por isso que a candidata da Frente Nacional pode não ser a principal beneficiada do atentado de Paris. O medo também pode servir François Fillon, desesperadamente à procura de um impulso final, capaz de mobilizar uma direita que não se revia nele ou que rejeitava o seu muito discutível comportamento pessoal, que manchou a sua campanha. Nos últimos dias, o candidato republicano inclinou a sua mensagem ainda mais para a direita, aproximando-a do discurso identitário de Le Pen, com a vantagem de não carregar a imagem xenófoba e extremista da candidata da Frente Nacional. Tem experiência para tempos difíceis porque foi primeiro-ministro de Sarkozy durante cinco anos. Ganhou as “primárias” com o programa mais à direita do seu partido, incluindo na economia, e invocando os valores da França profunda, católica e de “origem”. Falou de uma Europa das nações e não das instituições. “Estamos em guerra, não há alternativa, somos nós ou eles”, disse no último dia da campanha.

3. Pelo contrário, Emmanuel Macron foi o único candidato que assentou a sua campanha no optimismo - quanto ao destino da França e quanto ao destino da Europa, defendendo a sua diversidade e a sua abertura ao mundo. Foi o exacto oposto de Le Pen. Disse na noite de quinta-feira que o Presidente tem como responsabilidade proteger os cidadãos e exortou os franceses a combater o medo. "O combate tem de ser travado para lá das nossas fronteiras no Iraque e na Síria". Foi a sua derradeira prova. Falta saber até que ponto o medo vai condicionar, ainda mais, o voto dos franceses.

 

 

 

 

 

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