Violência doméstica na Rússia: “Se ele te bate, é porque te ama”

Na Rússia, 36 mil mulheres são agredidas pelos parceiros todos os dias. Apenas em Junho deste ano a violência doméstica foi criminalizada. Agora a ministra Yelena Mizulina quer voltar à descriminalização.

Foto
MIGUEL MADEIRA/ARQUIVO

O padrasto de Tatyana começou por se mostrar irritado com tudo o que ela fazia. Criticava-a. Isso era ao início, depois veio a violência. “Ficou louco”, relembrou Tatyana – nome fictício, para proteger a sua identidade. “Durante cinco anos ele bateu-me, a mim e à minha mãe, sem piedade”. Tatyana, agora com 29 anos, espera que existam consequências para quem comete este tipo de crimes, para que haja um maior controlo.

Anya vivia numa situação de medo constante. Não sabia a quem pedir ajuda. “Tem sido um pesadelo, mas um pesadelo silencioso”. Foi agredida e abusada verbalmente pelo marido durante um casamento que durou sete anos. Mudou-se para um abrigo que acolhe mulheres vítimas de violência doméstica com os dois filhos, de quatro e sete anos de idade. “A polícia não quer tratar destes assuntos”.

As histórias de Tatyana e Anya não são únicas. Em 2013, Anya partilhou a sua história com a BBC – nessa altura a violência doméstica não era crime na Rússia. Recentemente, a 21 de Junho, a lei foi alterada: foi introduzida uma cláusula pelo Supremo Tribunal russo, assinada pelo Presidente Vladimir Putin, que declara que a violência dentro da família é um crime que deve ser investigado da mesma forma que os crimes de ódio e o hooliganismo. O caso de Tatyana foi publicado no jornal The Moscow Times no início deste mês.

Todos os dias 36 mil mulheres são vítimas de violência doméstica na Rússia. As estatísticas oficiais do Governo russo informam que 40% de todos os crimes violentos acontecem em contexto familiar. Por ano, 26 mil crianças são agredidas pelos pais. Larissa Ponarina, representante de uma organização não-governamental que ajuda mulheres vítimas de violência doméstica – a ANNA, Centro Nacional para a Prevenção da Violência – aponta para mais de 14 mil mulheres que morrem por ano, às mãos dos agressores.

Mas há quem seja contra a criminalização da violência doméstica. Yelena Mizulina, ministra ultraconservadora russa, apresentou uma proposta à Duma estatal (a câmara baixa da assembleia federal russa), em Julho, pedindo a descriminalização da violência dentro das famílias. A mesma ministra, em 2013, já tinha conseguido introduzir uma lei que proíbe “propaganda gay” – desde então, passou a ser ilegal difundir qualquer material sobre direitos gay ou equiparar relações heterossexuais a relações homossexuais.

Quanto à mudança na lei da violência doméstica, Mizulina, senadora e responsável pelo comité dos Assuntos da Família, Mulheres e Crianças, assegura que “deve ser considerada uma contra-ordenação” – o abuso deve ser legalizado. “Não queremos que as pessoas sejam presas por dois anos e rotuladas como criminosas para o resto das vidas por uma bofetada”, comentou a ministra russa. Para Mizulina a nova legislação é “anti-família” e defende que o Estado não deve intervir em assuntos familiares.

Em Julho deste ano, dias antes da nova lei ser aprovada, a campanha #IAmNotAfraidtoSpeak surgiu nas redes sociais. Começou por ser divulgada no Facebook por Anastasia Melnychenko, ucraniana, mas rapidamente se espalhou também pela Rússia. Fazendo uso dessa hashtag, Melnychenko partilhou uma lista de todos os incidentes de abuso sexual que sofreu desde os seis anos, noticiou a revista Slate. Não houve só reacções positivas – o Facebook cancelou a sua conta uma semana depois da primeira publicação – mas a mensagem foi largamente partilhada, inspirando outras mulheres a seguir o seu exemplo.

Até agora, os casos que recebiam a atenção da polícia e dos tribunais eram os de mulheres que tinham sofrido ataques físicos com sequelas muito graves ou que tinham sido mortas. Muitas das vítimas não têm dinheiro para contratarem um advogado ou conhecimentos legais suficientes para apresentarem queixa contra o seu agressor. Cerca de 90% dos casos são arquivados por razões técnicas – apenas 3% acabam em condenações de qualquer tipo. O resultado mais comum é uma multa no valor de 50 mil rublos (cerca de 690 euros), e por isso a polícia não quer lidar com a burocracia envolvida nestas investigações, revelou Nikolai Levshits, que trabalha para a Russia Behind Bars, uma organização não-governamental dedicada à promoção do Estado de Direito, que defende a reforma dos sistemas judiciais e penais na Rússia.

No ano passado, em Junho, Anna Zhavnerovich, jornalista de 28 anos, contou ao The Guardian a forma como a polícia tratou o seu caso. Foi espancada pelo namorado até ficar inconsciente. Quanto apresentou queixa foi surpreendida com algumas das questões que lhe colocaram. “Perguntaram-me por que não tinha filhos. Perguntaram se era casada”, recordou. A cada pergunta sugeriam que a culpa podia, de alguma forma, ser dela. Informaram-na de que iam investigar, mas semanas depois foi notificada de que o caso tinha sido arquivado. O ex-namorado não foi interrogado e quando Zhavnerovich tentou prosseguir com a investigação, contratando um advogado privado, disseram-lhe que os seus ficheiros tinham sido perdidos.

Zhavnerovich usou os meios que tinha. Jornalista no W-O-S – um site de lifestyle com sede em Moscovo –, publicou um artigo em que denunciou os abusos de que tinha sido vítima. Aquilo que era um tabu na Rússia começou então a ser discutido. Chegaram-lhe várias histórias semelhantes. “Isto era um assunto sobre o qual não se falava. Estava sempre lá mas nunca ninguém falava sobre ele. Senti que tinha uma responsabilidade em contar às pessoas o que me tinha acontecido”, confessou.

Os políticos também mudaram de discurso face a este problema. Há muito tempo que a Rússia tentava aprovar uma lei que criminalizasse a violência doméstica. Cerca de 50 projectos de lei foram considerados desde a década de 90 até se chegar à nova lei, aprovada apenas este ano.

O The Guardian revelou o paradoxo: a igualdade no local de trabalho é amplamente promovida na Rússia, mas nos lares o sistema patriarcal continua a prevalecer. Já em 2010, o Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres das Nações Unidas assinalava que “o foco do partido estatal no papel da mulher [é] enquanto mãe e cuidadora”. Marina Pisklakova, directora do centro ANNA, sabe que o fenómeno da violência doméstica é global, mas a falta de legislação era o que tornava a situação da Rússia particular. “Precisamos desesperadamente de legislação porque quando não ela existe, faz parecer que é algo tolerado pela sociedade. A legislação em si será uma declaração poderosa de que [a violência doméstica] é inaceitável. Acho que isso terá um impacto nos comportamentos”, disse, citada pelo The Guardian, em 2015.

E agora talvez essa conquista possa ser revertida. O facto de existir quem queira alterar o enquadramento jurídico da violência doméstica revela que a questão vai para além de mudanças na lei – é algo mais profundo, intrínseco aos valores familiares do país. “Se ele te bate, é porque te ama”, reza o provérbio russo.

“Os valores tradicionais – ou melhor, arcaicos – voltaram a ser populares”, declarou Alyona Popova, activista que luta pelos direitos das mulheres, ao The Guardian, numa notícia publicada este mês. “A sociedade diz às mulheres para casarem com o fim de deixar os seus maridos decidir as coisas por elas. Se um homem te bater, é porque é mais forte do que tu e tem o direito de te bater, devias até considerar-te sortuda por estar casada”, acrescentou.

Estas declarações são uma reacção aos comentários feitos pelo All-Russian Parents’ Resistance – um movimento que é contra o sistema de justiça juvenil. Segundo este grupo, os pais devem ter o direito de escolher a forma como educam os filhos, mesmo que envolva violência, e esta nova lei levaria à “acusação de pais que estão a agir de acordo com o quie entendem ser os melhores interesses dos seus filhos”, defendem.

“Uma mãe espancou o filho por ver pornografia. Mas os seus professores na escola repararam nas contusões, fizeram queixa, e o tribunal exigiu à mãe que pagasse uma multa de oito mil rublos (…) Os pais já não podem escolher com que métodos educam”, lê-se no site da organização. No entanto, para Mari Davtyan, advogada que lida com vítimas de violência, o número de processos contra pais que maltratam os filhos não deverá ser alterado. “Agressores de vários grupos sociais – crianças, deficientes e idosos – sempre foram acusados de crimes por parte das autoridades”, avançou ao The Moscow Times.

O que a legislação traz de novo é a protecção das mulheres – agora, de acordo com a lei aprovada este ano, podem ser as autoridades a iniciar uma acusação. Anteriormente, apenas podia ser de forma privada: a queixa tinha de ser apresentada pela própria vítima, que tinha ainda de fornecer elementos de prova para sustentar a acusação. Davtyan acredita também que esta lei pode mudar a mentalidade das autoridades, no sentido de investigarem estes crimes com maior preocupação. E é essencial que as mentalidades mudem. “Já não há tanta negação como havia antes”, garantiu Marina Pisklakova.

 

Texto editado por Rita Siza

 

 

 

 

 

Sugerir correcção
Ler 40 comentários