Vidas hipotéticas

A pergunta “Se fosse eu?” que dá mote a esta reflexão, traduz essa experiência diametralmente oposta entre quem se encontra e quem não se encontra em risco de vida, ou de “vida morta”.

Foi recentemente lançado por organismos governamentais em articulação com a Plataforma de Apoio aos Refugiados o movimento "E se fosse eu? Fazer a mala e partir?", que levou crianças de várias escolas e personalidades famosas a tentarem pôr-se na pele de um refugiado. A iniciativa, muito meritória, visou sensibilizar a comunidade para a realidade dos refugiados recorrendo ao convite a uma hipotética necessidade de fuga. Cada aderente pensou no que levaria consigo numa mochila se tivesse de partir como partem milhares e milhões de refugiados dos nossos dias.

Este desafio coloca em evidência um aspeto fundamental na compreensão ou incompreensão da chamada “Crise dos refugiados” por parte de cidadãos de todas as idades: a capacidade de nos colocarmos na pele do outro. Não será apenas a maturidade intelectual de cada um que permitirá essa empatia. Há um outro requisito que não escolhe idade nem coloração política e que é o do exercício da alteridade efetiva (ou fazer aquilo que se diz). E é aqui que as grandes águas se dividem, entre quem é permeável à sensibilização por empatia, e quem é rígido nos seus dogmatismos. O mesmo é dizer, entre quem aceita aprender algo de novo – eventualmente radicalmente diferente daquilo em que acredita –, e quem considera que já sabe tudo mesmo desconhecendo a nova experiência proposta.

Se a chegada maciça de refugiados ao espaço da União Europeia tem enchido de imagens e informações as televisões, e se esta visibilidade dos refugiados tem levado ao debate generalizado sobre uma questão que não é nova, o dever e o direito de informação sobre o assunto nem sempre acompanham uma verdadeira sensibilização sobre o que é ser-se (ou estar-se, este é outro debate) refugiado. A dificuldade resulta do facto de, justamente, a vida não ser hipotética. Nunca. Ela é mesmo a própria e visceralmente experimentada forma de estar no mundo. Portanto, assim como nos é impossível sentir fisicamente a dor de estômago do nosso melhor amigo, ou a febre de uma filha, também é impossível estar efetivamente no lugar do outro, próximo ou distante. O que nos resta fazer – e é esse o verdadeiro grande desafio –, é aceitar a experiência do outro só por si. E imaginar um cenário onde a identidade e existência (nossa e dos outros) poderiam e podem ser diferentes, acolhendo as situações de vulnerabilidade extrema, como são as dos refugiados, entendidas como um estado a ser ultrapassado para o bem de todos.

A necessidade de imaginação do outro que poderíamos ser nós noutras circunstâncias, e que já fomos nós europeus noutros tempos da história (pense-se nos milhares de irlandeses e italianos que fugiram da Europa no século XIX, os milhões de alemães que saíram da Alemanha após a primeira e segunda guerras mundiais, os mais de duzentos mil húngaros que deixaram a Hungria em apenas quinze dias no ano de 1956, e as centenas de milhares de portugueses e espanhóis que escaparam do fascismo nos anos 1960 e 1970), corresponde a um exercício de sobrevivência. Os motivos que levam famílias inteiras a saírem dos seus países, sem destino

certo, procurando refúgio mesmo sem garantia de este poder ser encontrado, são questão de vida ou de morte face aos cenários de guerra, perseguição, seca, fome ou miséria nos territórios de onde provêm. Estas seriam razões mais do que suficientes para não hesitar um segundo na aplicação de políticas humanitárias que respeitassem a dignidade das pessoas em fuga, facilitando as suas viagens, seu enquadramento legal, saúde e segurança. Sem demora.

Assim como para cada bebé nascido na Europa se processa um registo de nascimento, e para cada defunto se emite uma certidão de óbito, para cada refugiado seria de esperar a emissão clara e expedita de um documento legal que lhe garantisse a proteção de direitos e segurança perante os estados. Neste caso não estamos no domínio do hipotético. As mulheres, homens e crianças (mais de metade dos refugiados hoje no mundo são crianças) que chegam à EU com vida (foram já milhares os que morreram na travessia), precisam de viver as suas vidas com dignidade e têm direito a isso, como têm direito – não nos esqueçamos – a pedir asilo, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A pergunta “Se fosse eu?” que dá mote a esta reflexão, traduz essa experiência diametralmente oposta entre quem se encontra e quem não se encontra em risco de vida, ou de “vida morta” (porque a dignidade negada é uma forma de morte social), a “vida nua”. E a resposta a dar só é passível de imaginação nos casos hipotéticos. Um luxo existencial, portanto. Luxo esse que é exercido de forma mais ou menos responsável por gente diferente. Para os refugiados, muito realisticamente, os factos limitam a possibilidade de ação e o que há a perguntar é: “e se fosse eu a encontrar a solução?”. Ora as soluções para este problema não dependem da esfera individual, nem apenas do exercício mais ou menos consciente de empatia face ao “lado de lá”. O poder de decisão sobre o destino destes milhões de refugiados está alienado da empatia que o exercício referido procurou suscitar. Daí a importância de olhar e dar a conhecer, antes de imaginar, o que se passa no concreto nos campos de refugiados.

Os relatos de voluntários que estão a tentar ajudar nas zonas de afluência e retenção dos refugiados, neste sentido, são terrivelmente esclarecedores do abismo que existe entre os dois lados dos campos e da imaginação: o lado de quem fornece e o de quem necessita de apoio. Não só a experiência oposta de cada lado reitera o poder de uns sobre a vida dos outros (o que comer, o que vestir para resistir ao frio, onde dormir, como, etc..), como se testemunham aproveitamentos materiais e simbólicos da vulnerabilidade extrema dos refugiados.

Perante estes factos, a responsabilidade empática de todos e de cada um fica acrescida da necessidade de uma ação coletiva que respeite muito simplesmente as leis e os valores da União Europeia. A deportação dos refugiados para a Turquia como solução europeia é pois uma aberração. Tanto mais quando se sabe que a desterritorialização do problema só o vai fazer crescer. Não em forma de pedidos de asilo, ou conflitos sociais e culturais, mas em exercícios coletivos de pura sobrevivência para “eles” e para “nós”.

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

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