Vendaval Trump varre a América e deixa mais perguntas do que respostas

Donald Trump não só foi eleito Presidente dos Estados Unidos da América como praticamente apagou do mapa político do país as duas famílias mais influentes das últimas décadas – os Clinton e os Bush.

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Donald Trump após ser eleito Presidente Reuters/MIKE SEGAR

Tudo começou com uma piada num episódio dos The Simpsons há 16 anos, quando a filha mais velha de Homer chegou à Casa Branca e recebeu a notícia de que o seu antecessor, Donald Trump, tinha deixado o país na bancarrota. Nos anos seguintes, foram muitas as piadas feitas sobre uma possível candidatura do magnata do imobiliário, alimentadas pelo próprio com tantos avanços e recuos que já ninguém o levava a sério. Mas esta semana, o último a rir foi Donald Trump: depois de uma campanha em que esmagou 16 adversários na corrida pela nomeação no Partido Republicano, não só foi eleito Presidente dos Estados Unidos da América como praticamente apagou do mapa político do país as duas famílias mais influentes das últimas décadas – os Clinton e os Bush.

Na primeira manhã a seguir à noite mais longa de Hillary Clinton, a sensação de que o país tinha acordado num universo paralelo lia-se nos olhos e ouvia-se nas palavras aos soluços do porta-voz da Casa Branca, Josh Earnest: “Muitas pessoas que votaram em Barack Obama em 2008, e que o reelegeram em 2012, votaram em Donald Trump em 2016. E eu acho que… Não tenho uma explicação para isso, para ser honesto.”

Os principais actores deste filme cheio de voltas e reviravoltas já tinham falado, todos com palavras cheias de promessas de união e respeito pelo resultado das eleições, como não podia deixar de ser. Mas a verdadeira história do que aí vem está mais naquilo que não se diz, nas expressões de espanto de muitos eleitores, tanto de um lado como do outro, que ainda têm dificuldade em acreditar no que aconteceu naquela histórica noite de terça-feira, 8 de Novembro de 2016.

Mas para quem espera um regresso à normalidade o mais depressa possível, a coisa não começou mal. Já na madrugada de quarta-feira, o Presidente eleito fugiu a sete pés dos discursos inflamados da campanha, e quem esteve ausente do planeta Terra no último ano e meio deu de caras com um verdadeiro estadista, a espalhar gentileza pela sua adversária e a estender um ramo de oliveira à outra metade do país que não votou nele.

As primeiras palavras foram para Hillary Clinton, e com elas parece ter sido enterrada a ameaça de nomear um procurador especial para investigar a candidata do Partido Democrata, que Donald Trump lançou no segundo debate presidencial, há apenas um mês: “Hillary trabalhou muito e durante muitos anos, e nós temos uma grande dívida de gratidão para com ela pelo serviço que prestou ao país. E digo isto com toda a sinceridade.”

Trocou palavras como corrupção e sistema manipulado por pedidos de “orientação e ajuda” a quem não votou nele, e garantiu que será Presidente de todos os americanos: “Chegou a hora de a América fechar as feridas da divisão, temos de nos unir. A todos os republicanos e democratas e independentes em todo o país, digo-vos que é hora de voltarmos a ser um povo unido.”

A resposta do outro lado foi igualmente pacificadora, tanto na voz emocionada de Hillary Clinton como na postura resignada de Barack Obama. A candidata que para muitos já tinha ganho antes do dia das eleições, com as sondagens a empurrá-la para a frente como um vendaval imparável, pediu desculpa aos seus apoiantes por não ter quebrado o telhado de vidro à segunda tentativa – aquela barreira invisível que tem mantido as mulheres fora da Sala Oval desde a fundação do país.

Há oito anos, quando perdeu as eleições primárias do Partido Democrata para o então senador Barack Obama, Hillary Clinton disse que se os Estados Unidos conseguiram enviar 50 mulheres para o espaço, então também podiam enviar uma mulher para a Casa Branca. Oito anos depois, quando a rampa de lançamento estava pronta e engalanada, esse telhado de vidro continuou intacto, selado pelo movimento de milhões que se juntou à volta de Donald Trump.

No meio de tanta confusão, com um lado ainda a tentar perceber o que aconteceu e o outro sem saber se já chega de festa ou se começa a trabalhar, toda a gente quer ter respostas e ninguém tem certezas sobre nada. O país vai unir-se? E se sim, quando? Toda a gente sabe que não há resposta para isso, mas a pergunta é feita até à exaustão.

Mas o analista e especialista em sondagens John Zogby – um dos poucos, senão o único, que manteve até ao fim um grande ponto de interrogação na esperada vitória de Clinton – tem pelo menos uma resposta, e não é nada agradável para o Partido Democrata. “Esta eleição foi o resultado de Hillary Clinton ser a candidata errada e possivelmente a pior candidata que os democratas podiam ter nomeado”, escreveu Zogby.

“Ela é a personificação do sistema, da elite. É também a personificação de uma falta de autenticidade com que os eleitores – especialmente os mais jovens – simplesmente não podiam lidar. E neste processo não se limitou a transformar uma vitória garantida numa derrota. Também arrastou o seu partido com ela.”

Durante meses e meses sem fim, o partido com problemas, dividido em relação ao seu candidato, foi o Partido Republicano, mas os olhos voltam-se agora para o Partido Democrata. Para onde vão os mais progressistas que apoiaram o senador Bernie Sanders e votaram no candidato do Partido Libertário, Gary Johnson, ou na candidata dos Verdes, Jill Stein? É outra pergunta que toda a gente faz, mas para a qual ninguém tem resposta.

Essas respostas podem começar a chegar nas próximas semanas, ou só depois da cerimónia que vai confirmar Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos, em Janeiro do próximo ano. Para já, o domínio do Partido Republicano na Casa Branca e nas duas câmaras do Congresso indica que as divisões internas podem desaparecer mais rapidamente – de que vale a Trump ser Presidente sem um Congresso do seu lado, ainda por cima dominado pelo seu próprio partido?

Foi esse o sinal enviado por Paul Ryan, speaker da Câmara dos Representantes e um dos republicanos a quem Donald Trump provocou mais alergias. Depois de meses de lutas entre ambos, Ryan acordou quarta-feira com toda a vontade de trabalhar com o futuro Presidente. Está tudo esquecido, agora é preciso seguir em frente porque é preciso trabalhar para substituir o Obamacare e, mais importante, para nomear um juiz conservador para o Supremo Tribunal, algo que um Presidente Trump só conseguirá fazer se deixar de tratar o establishment como se fosse um mau investimento imobiliário.

No seu discurso, Ryan deixou cair uma das suas imagens de marca: sempre que falava sobre Donald Trump, nunca dizia o nome dele, mas apenas “o nomeado do partido”. Desta vez, depois da vitória do nomeado do partido, o presidente da Câmara dos Representantes disse o nome de Donald Trump 12 vezes durante a declaração ao país e nas respostas às perguntas dos jornalistas.

“Deixem-me dizer que este é o feito político mais incrível a que eu já assisti em toda a minha vida”, começou por dizer Paul Ryan. “Donald Trump ouviu uma voz neste país que mais ninguém ouviu. Ele virou a política de pernas para o ar. Agora, Donald Trump vai liderar um governo republicano unido. E vamos trabalhar em conjunto numa agenda positiva para enfrentar os maiores desafios deste país.”

Na casa de apostas das estações de televisão norte-americanas, a luta pela revogação do Obamacare é a prioridade de Donald Trump e do seu Partido Republicano aparentemente unido depois de uma vitória tão inesperada como sem margens para dúvidas. Depois virá a nomeação de um novo juiz para o Supremo Tribunal, o mais conservador possível. Do muro, aquele que Trump prometeu construir e obrigar os mexicanos a pagar por ele, nada se sabe ainda. A única certeza por agora é que Donald Trump lançou uma edição revista e anotada do seu livro The Art of the Deal e deixou um exemplar em cima da secretária do Partido Democrata com o título The Art of the Deal with it.

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