Uma viagem a Júpiter, o deus dos deuses

Nada deve saber tão bem a Trump como o "intervalo" que Macron lhe proporcionou.

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1. É difícil de imaginar o que passou pela cabeça do Presidente chinês quando, em Hamburgo, viu sentar-se a seu lado no jantar de gala a filha do seu homólogo americano. O "homem fortíssimo" que lidera com mão de ferro mil e duzentos milhões de chineses deve ter reforçado a ideia de que as democracias ocidentais são, definitivamente, um caso perdido. Um líder europeu poderia ter falado com Ivanka sobre a magnífica sopa de peixe que se come nos velhos restaurantes do porto ou das manifestações violentas e pacíficas que a democracia permite. Xi tem uma agenda muito pouco flexível. Não iria falar com ela sobre o programa nuclear de Pyongyang ou sobre a sua primeira base militar no exterior, em Djibuti. Não é "provincianismo". É uma concepção autoritária do poder, ao estilo dos regimes do "terceiro-mundo", que não é levada demasiado a sério apenas porque Trump preside à maior democracia do mundo. A chanceler alemã fez dele o alvo principal durante o G20, porque lhe estragou parte do guião, porque está em campanha eleitoral e porque não tem grande contemplação pelos "homens fortes", do estilo de Putin, Erdogan e Trump. Mal sabia o Presidente americano que o seu encontro com Putin lhe iria servir de pouco. À espera dele, em Washington, aguardava-o um novo escândalo (com o filho) sobre a interferência russa nas eleições, que estragou a encenação de Hamburgo sobre o "virar de página".

2. Nada deve saber tão bem a Trump como o "intervalo" que o seu homólogo francês lhe proporcionou. Os franceses, tal como os alemães, não gostam de Trump. Macron, tal como Merkel, discorda em quase tudo do Presidente americano sobre as grandes questões internacionais. Mesmo assim, considera (e talvez bem) que a Europa não pode nem deve cortar com ele, nem "encostá-lo à parede". A sua ideia é simples: não confundir os EUA com Trump e tentar controlar os estragos da sua presidência. É um líder habituado a conseguir o que quer. A França tem poder militar suficiente para impressionar Trump. É o segundo maior contribuinte ao lado dos EUA nas operações militares contra o Daesh e o seu principal aliado no Sahel (as tropas francesas têm o apoio discreto das forças especiais americanas). "Temos uma cooperação exemplar". Tem uma visão próxima sobre a Síria (dando pouca importância à mudança de regime) e elegeu o combate ao terrorismo como absoluta prioridade. A Casa Branca já sublinhou algumas destas virtudes, em particular o facto de a França gastar 1,8% com a Defesa (está praticamente no objectivo de 2% fixado pela NATO para 2024). Tem uma força nuclear digna de registo, cujo nome de código é Júpiter, o deus dos deuses, que agora passou também a servir para designar o Presidente.

A principal razão do convite é a celebração do 14 de Julho, quando passam 100 anos desde que a América interveio na Grande Guerra para salvar os europeus de si próprios. Haverá tropas americanas no desfile. Macron quer mostrar ao seu homólogo que os dois lados do Atlântico têm um interesse estratégico na segurança comum. Mas também, dizem fontes do Eliseu, a gratidão da França pelas duas vezes em que a América veio salvá-la. O Presidente quer devolver à França o seu protagonismo europeu e mundial, mas também a própria natureza, única, do cargo. "La France c’est moi" em versão moderna, que De Gaulle e Mitterrand desempenharam na perfeição, ainda que num contexto muito diferente. Os jornais franceses debatem qual será a melhor designação para esta política externa. A "autonomia" de De Gaulle já só é possível num quadro europeu. "Neogaullista" não parece, a não ser no simbolismo. Mas também não é "neoconservadora", a palavra que muitos analistas franceses utilizam para dizer "atlantista", que atribuem a Sarkozy e até a Hollande. Talvez seja apenas uma política realista num mundo interdependente, que assenta no reforço do papel da Europa no mundo e no reforço da França na Europa. Além disso, o que o Presidente francês está a fazer é aproveitar a triste saída de cena do Reino Unido para o substituir como principal interlocutor de Washington (a visita de Trump a Londres foi adiada para 2018, sem data marcada).

3. Trump tem uma raiva especial à Alemanha, mas também disse que Paris "já não é o que era", com a sua vasta comunidade muçulmana e os atentados terroristas. Parece não ser sensível à velha "grandeza" europeia, embora a decoração do seu andar na Trump Tower tenha sido inspirada em Versalhes. Na quinta-feira, Macron também esteve reunido com a chanceler nos habituais conselhos de ministros bilaterais para debater o relançamento da Europa. O convite a Trump para assistir ao desfile do 14 de Julho também serve para dizer que a economia não é a única coisa que conta.

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