Um livro único em Portugal

Nada existe em português com a amplitude de Depois do Fim, onde Paulo Moura revisita centenas de cadernos, costurando um retrato do último quarto de século.

1. Paulo Moura, o maior repórter da imprensa portuguesa dos últimos 25 anos, aquele que por mais tempo, de forma mais intensa e regular, cobriu a vida em mais partes do mundo, onde ela corria o risco de ser derradeira, ou ficar escondida, acaba de publicar um livro literalmente único. Que eu conheça, nada existe em português com a amplitude de Depois do Fim, estas 620 páginas onde o Paulo revisita centenas de cadernos de reportagens, de 1991 a 2016, costurando um retrato do último quarto de século.

2. Amplitude é um conceito difícil em Portugal, país de espectros curtos, por contingência. A falta de condições (leia-se: apoios, fundos ou bolsas fora da academia, pouca diversidade de meios e estruturas) favorece o breve ou o intercalar, aquilo que é feito no intervalo de “ganhar” a vida, entravando a continuidade necessária à grande escala. E, por vezes, a capacidade de admitir, reconhecer ou desejar a grande escala. Essa é uma incapacidade que o Paulo nunca teve, desde que era estagiário e numa viagem circunstancial soube que um mito estava na porta ao lado, portanto entrou por essa porta, com a lata que é o verdadeiro deus vivo dos repórteres: até se provar impossível, por que não? O repórter superou a circunstância, fez a diferença, e havia um jornal novo para dar importância a isso. Ao abrir o seu baú de grande repórter, o Paulo começa por fazer, assim, um tributo aos fundadores (e refundadores) desse “sonho” original do PÚBLICO como um jornal que pensasse à escala do mundo. Um “sonho” que fez do PÚBLICO, acredito, um dos melhores jornais do mundo durante algum tempo. E, desde o início, isso deve-se também ao Paulo.

3. Vim a ler as primeiras dezenas de páginas deste livro dentro de um comboio que avançava à chuva, com aquela melancolia dos comboios que avançam na chuva, não fosse 2016 já ter transformado a melancolia noutra coisa, numa espécie de congestão do planeta. Minuto a minuto era a guerra da era Trump, e ainda a guerra na Síria, e de novo a guerra no Rio de Janeiro, amigos no meio do tiroteio, e lendo a introdução do Paulo eu pensava que não só este livro é único como será irrepetível. Que daqui a 25 anos não haveria um repórter como ele para percorrer o mundo ao longo de 25 anos, contá-lo em reportagens diárias no mesmo jornal, depois abrir o baú, fazer o arco, propôr um recorte. Tudo isto na mesma pessoa, no mesmo jornal, num só livro.

4. O subtítulo do livro é “Crónica dos primeiros 25 anos da Guerra de Civilizações”, e o índice revela a ordem cronológica dos lugares: Argélia, Estados Unidos, Iraque, Tchetchénia, Caxemira, Kosovo, Afeganistão, de novo Iraque, Europa (Madrid, Paris, Hamburgo, Londres), Sudão, Egipto, Líbia, Turquia. “Os grandes litígios do último quarto de século envolvem o Islão, na sua expressão radical e política”, vê o repórter ao olhar para trás. E o livro será um puzzle disso a que podemos chamar “‘Guerra de Civilizações’, mas só entre aspas”. Paulo Moura não acredita nela, nem no Fim da História: “O que se passa hoje não confirma esta previsão, porque o islamismo (entendido, como acontece nas páginas deste livro, como um movimento que pretende conquistar o poder político para impôr a lei islâmica fundamentalista) é uma ideologia e não uma religião. E a maior prova de que a dicotomia civilizacional é falsa é que o movimento jihadista foi incentivado, ajudado, armado, treinado — no fundo, criado — pelos EUA e o Ocidente em nome de afinidades civilizacionais. Tratava-se de unir as civilizações fundadas nos valores espirituais e religiosos (fossem cristãs ou muçulmanas) para combater os comunistas ateus e materialistas. O título e subtítulo deste livro devem, portanto, ser lidos como ironia.”

5. Mas sendo “uma farsa”, esta “guerra de civilizações” matou (e continua a matar) milhões. Aí, o repórter pergunta: “Pessoas que morreram em nome de quê? Qual é o seu papel na História? Serem enganadas? Manipuladas até à morte? Serão as personagens reais de dramas imaginários? Quem são esses actores de carne e osso? Os que estavam lá, nos palcos, nos cenários? Combateram as guerras de outros? Morreram por uma mentira? Viveram a História sem realmente participar, como vítimas de catástrofes naturais? Este livro é testemunho desses mortos, feridos e refugiados.” O mundo teve muitos fins, muitos começos. O 25 de Abril, diz Paulo, foi o primeiro que lhe coube viver. Como repórter houve vários outros. Entre esse ele cita um que talvez seja o único em que coincidimos, porque sendo ambos repórteres do PÚBLICO durante bastantes anos aconteceu revezarmo-nos (Iraque, Paquistão-Afeganistão) mas não coincidir em lugar e data. A Praça Tahrir em 2011 foi uma excepção, porque o Paulo estava a cobrir os acontecimentos para o jornal, e eu fui por minha conta. Creio que nem nos chegámos a ver, só falámos ao telefone, de um ponto para outro da praça, mas o que ele diz aqui, cinco anos depois, foi exactamente o que senti então sobre esse “princípio do mundo”: “Centenas de milhares de jovens tinham permanecido dia e noite naquela praça, semanas a fio, dispostos a morrer pela liberdade. Alguns morreram. Os analistas nas capitais do Ocidente escreveram editoriais cépticos desde o primeiro dia. E tinham razão, claro. Nenhum daqueles sonhos se cumpriu.” Mas “aquilo foi verdadeiro quando aconteceu”. E todo este livro, além da Praça Tahrir, é sobre isso: esses “momentos autênticos e irredutíveis, esse parêntesis de liberdade na contingência determinista, essa História paralela que, com mãos invisíveis, vai lançando, acredito, as suas ondas sísmicas através do tempo”. Em suma: “A História dos ingénuos, os que não compreenderam a História, mas que a viveram.” É isto que se perde na história dos “vencedores”, e dos que “compreendem” a história; no entanto esteve vivo, foi verdade, ainda que por momentos. Foi isso que ficou na memória, em centenas de cadernos, e agora está guardado neste livro, para a frente.

6. Como o Paulo conta o que conta é inconfundível e inspirou várias gerações de repórteres. Há no olhar dele uma perpétua juventude sem julgamento, uma disponibilidade para a comédia humana que vem de uma total, genuína curiosidade. O Paulo é um grande repórter porque acha tudo interessante, e, como diria o García Márquez, se nos maçarmos a escrever as pessoas vão-se maçar a ler, e, como diria o Kapuscinski, se o repórter for cínico então quem vai acreditar no que ele conta? O Paulo conta o que realmente lhe interessa, portanto nunca se maça, nem nunca nos maça. Acredita no que faz, e nós acreditamos mais porque ele acredita. Mas, além de tudo o que admiro como leitora e repórter, há outra herança de quem teve, tem, a sorte de lidar com ele de perto: sempre partiu, e andou de lugar em lugar, como se tudo fosse fácil, ou pelo menos possível. Na mão dele, nada do que é humano nos é estranho.

7. Então, mesmo sem nunca ter ido a Argel estou a vê-lo lá, naquele dia em 1991, naquela viagem circunstancial de políticos que ele fora cobrir porque a editora de Internacional, Margarida Santos Lopes, não pudera. Estou a vê-lo arrebitar as orelhas ao saber que o palestiniano George Habache, mítico rival de Arafat, procurado por desvio de aviões e sequestros, estava na sala ao lado. Estou a vê-lo escapulir-se para o realmente interessante, entrar pela sala com a entourage de Habache, e 25 anos depois contar, para nosso divertimento, como confundiu Habache com o militante ao lado e lhe fez um discurso patético de estagiário, pedindo uma entrevista. No dia seguinte, Habache chamou aquele português descarado e o PÚBLICO ganhou um furo. Chapéu, Mourisca.

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