Turquia, um campo de batalha global?

A relação da Europa com a Turquia deve ser gerida com pinças. É que há países com que não se deve brincar.

“Ouçam bem: se forem mais longe, estas fronteiras abrir-se-ão, para deixar entrar os imigrantes que pretendem entrar na União Europeia. Ponham isso na vossa cabeça”
Recep Erdogan


1. Os múltiplos atos terroristas perpetrados em território turco nas últimas semanas, de onde se destaca o assassinato do embaixador russo, em Ancara, vieram reforçar a necessidade de todo o mundo, e em particular da Europa e da NATO, olharem com maior pragmatismo para este país, que é crucial para a Ásia e para a Europa, e que na prática se está a transformar num campo de batalha global. Isso mesmo. Um campo de batalha global, com consequências explosivas, para não só a Europa, como também para toda a Ásia e até para outros territórios vizinhos. 

2. A Turquia, que iniciou as negociações para a sua adesão à União Europeia em 2005, quer aderir definitivamente em 2023. Mas dos 35 capítulos que constituem o pacote de matérias a negociar apenas um desses capítulos está fechado — que é o capítulo da ciência e da investigação. E 2023 é precisamente o ano em que o presidente Erdogan diz ser o tempo limite para liderar os destinos da Turquia, enquanto seu Presidente. E são cada vez mais as vozes que dizem que quer ser uma espécie de novo sultão. Erdogan, pelo seu lado, vai reafirmando que não quer impor os valores islamistas. Para a Europa, a Turquia poderá vir a transformar-se num problema, muito maior do que têm sido quer a Rússia, quer o Daesh e as vagas de refugiados, que lhe têm entrado pelo território europeu, devido aos erros cometidos no Médio Oriente e no Norte de África. A Europa, reincidente no abuso da sua unipolaridade política e normativa, está cada vez mais cercada nas suas fronteiras a leste e a sul. Muito por culpa própria. E fazer ao processo turco (de adesão à União Europeia, de gestão dos fluxos migratórios, de parceiro maior da NATO, etc.) o mesmo no tempo e nos resultados que se fez com a Rússia, Ucrânia, Líbia, Síria poderá vir a ser um desastre, com consequências imprevisíveis.
 

3. É preciso saber e compreender a História, a geopolítica, as relações internacionais, para perceber que a Turquia não é um país qualquer. Antes pelo contrário. Aquilo que hoje, enquanto território e povo, é a Turquia foi sempre: um território, uma comunidade política e religiosa, e um mosaico de povos, entre o continente asiático e o continente europeu. Uma nação entre a Ásia e a Europa. Um território sempre decisivo para a segurança da região euro-asiática. Quando Mustafal Kemal Atatürk, o herói unificador da Turquia, em 1923, após o desmoronamento do império otomano no pós-I Guerra Mundial, criou a Turquia, enquanto república laica e pró-ocidental, sabia muito bem o que estava a fazer —aliás, adotando o calendário ocidental e gregoriano e o alfabeto latino. E aderindo à NATO em 1952 e tentando aderir à CEE pela primeira vez em 1959.

4. A Turquia é a 18.ª economia do mundo, tem um PIB de 717 mil milhões de euros, que é quatro vezes a riqueza produzida em Portugal. O seu défice tem sido de 1,2% e a sua dívida externa de 55,2%. A Turquia é, por outro lado, o 31.º país maior exportador mundial e o 21.º maior importador. E tem um mercado de 77 milhões de consumidores. Tudo o que seja relacionamentos e procedimentos que a Europa tenha de ter com a Turquia deve ter estas e outras coisas bem presentes. E tendo presente que, em geopolítica, o passado nunca morre e o mundo não é plano e os sentimentos de identidade e de pertença são mais fortes e duradouros do que os modelos económicos e os interesses europeus e ocidentais. Não sendo despiciendo, no caso turco, ter presente que a memória dos povos vale mais do que muitos tratados internacionais.

5. A Turquia, após a tentativa de golpe de Estado, em 15 de Julho de 2016, entrou internamente e externamente em mudanças, reajustamentos, e até perseguições a tudo e a todos os que parecem ter estado ao lado dos golpistas. Isto, apesar de serem muitas as vozes a afirmarem que tal não tem passado de uma purga para afastar adversários e críticos do presidente Erdogan. Até no domínio da sua política externa a Turquia se reaproximou da Rússia de Putin, da China, do Irão e de outros aliados asiáticos. E decidiu entrar a sério no combate ao Daesh, com resultados muito significativos. E também na sua marca clara de potência regional, com fronteiras com países como a Síria, Iraque, Irão, Bulgária e Grécia. E não é despiciendo ter presente a importância das forças armadas turcas, no âmbito da NATO e da região asiática. Forças armadas que, na tradição do fundador, do laico Atatürk, continuam a ser o principal guardião do secularismo turco. A Turquia, em 2016, continuou a ter no problema curdo um dos seus principais problemas. Os curdos, povo que desde 1924 luta pela sua independência, e o seu Curdistão livre continuam a ser um dos principais temas de discussão entre a Turquia a Rússia e outros países da região e da Europa.

6. Na Europa, a Alemanha é o país que mais está condenado a ter de gerir com pinças as suas relações com a Turquia. Para além de múltiplas razões, assume especial relevância o facto de ter três milhões de turcos a viverem no seu território, dos quais muitos são também alemães e dos quais um milhão e meio votam nas eleições turcas. Erdogan, do alto do seu novel palácio, em tradição majestática de na prática assumir a condição de sultão, tem feito tudo para acabar com os vestígios do seu arqui-inimigo Güllen, a viver nos EUA. O curioso é que cerca de dois terços dos turcos parecem acreditar que a organização de Güllen foi mesmo a responsável pelo golpe de Estado de Julho.

7. Que a aplicação da pena de morte, na Turquia, não tire à Europa e ao Ocidente o discernimento para que a Turquia se não entregue nos braços da Ásia e de países como a Rússia, o Irão e a China. Sobretudo os EUA, que têm mais de uma centena de armas nucleares na Turquia, devem tudo fazer para manter as melhores relações com esse seu aliado. Aliás, a Turquia já fez sentir de forma clara que exige à NATO que não conceda a alguns golpistas apoio e asilo político, mesmo quando Erdogan assume que gostava de expandir o atual território turco. Para que não aconteça o que aconteceu com a Rússia a propósito da Ucrânia, a Europa não deve entrar em ruptura negocial com a Turquia. Nem a Europa deve subestimar a Turquia, nem a Turquia deve subestimar a Europa. Mesmo quando, provocatoriamente, Erdogan vai sugerindo que vários países devem sair da Europa. A relação da Europa com a Turquia deve ser gerida com pinças. Mesmo no quadro da reposição da pena de morte. É que há países com que não se deve brincar.
E a Turquia é um deles. Ainda por cima quando está cada vez mais transformada num campo de batalha global, também às portas da Europa.

deputado; presidente da Comissão Parlamentar de Trabalho e Segurança Social

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