Tempos interessantes

Três dias depois do referendo sobre o “Brexit”, em 26 de Junho, haverá eleições legislativas em Espanha, onde o Podemos, aliado com o Unidos, defende uma política ao mesmo tempo soberanista e europeísta.

“Possam os teus filhos viver tempos interessantes”, ou seja que as complicações que normalmente advêm da vivência de importantes acontecimentos históricos não aconteçam no (meu) tempo presente. Este é o verdadeiro sentido do célebre adágio chinês e foi por mim escutado numa aula de mestrado em Política Internacional do embaixador belga Alfred Kahn, na Universidade Livre de Bruxelas, há um pouco mais de 20 anos. Porque normalmente é mal referido e incorrectamente citado, até pelo meu ex-colega de lides europeias, Pacheco Pereira, (apesar da sua invejável biblioteca), aqui fica o contributo, urbi et orbi, de quem, à sua custa, regressou aos bancos da universidade aos 45 anos, como trabalhador-estudante, para tentar compreender o que se estava a passar no mundo com o final da guerra-fria.

Eu já vivi sucessivos tempos interessantes, (revolta estudantil de 1962, revolução do 25 de Abril de 1974, ingresso na Comissão Europeia em Janeiro de 1989, excluindo da lista os mais de 4 anos de serviço militar obrigatório, com passagem pela guerra colonial), e por isso sou levado a não concordar com a prudência chinesa, pois nem tudo é mau quando se vive tempos interessantes, sendo que o pior são as ilusões perdidas, aquilo que se projectava conquistar e não se realizou. Ainda hoje sinto isso em relação aos ideais do 25 de Abril, vividos com grande esperança de renovação da sociedade portuguesa e a triste desilusão que se nos depara no país actual. O mesmo se passará, ainda com mais intensidade, em relação aos países africanos que se tornaram independentes há 40 anos, de quem fui companheiro de sonhos na minha juventude, mas cujos descendentes actuais só muito tenuemente possuem consciência dos projectos falhados dos pioneiros das independências.

Não, não foi para isto que alguns milhares se sacrificaram em Portugal e em África, em países onde muitos deram o seu sangue na esperança de um futuro que não tem nada a ver com o presente actual.

Vem isto a propósito de mais dois acontecimentos interessantes deste mês de Junho, o “Brexit” e as eleições espanholas, que dizem respeito não apenas aos eleitores daqueles países, mas a todos nós. A esse respeito, o jornal The Guardian abriu as suas colunas a algumas individualidades estrangeiras para opinarem sobre a possível saída do Reino Unido da União Europeia. Foi interessante, por isso, ler o depoimento do jornalista francês do Libération, Jean Quatremer, que conheci em 2008 num colóquio no Instituto de Estudos Europeus da Universidade Livre de Bruxelas, quando ali regressei para fazer investigação para a minha tese de doutoramento sobre o tema Europa Potência Civil. Pareceu-me, na altura, que as suas ideias sobre a Europa eram muito superficiais, mas o certo é que enviou para o jornal britânico um interessante depoimento, em tom jocoso, pedindo aos britânicos para votarem pela saída da Europa, pois que seria a solução para salvar o projecto europeu. É verdade que este era um sentimento existente no meu tempo, especialmente na primeira metade dos anos 1990, quando participei nalgumas reuniões preparatórias dos Conselhos de Energia e os britânicos se opunham a todo o tipo de integração europeia, defendida pela então Comissão Jacques Delors, no que eram acompanhados pelos holandeses e por vezes pelos alemães, sendo que a partir de 1995 se juntaram os suecos. No que me parecia, talvez com alguma ingenuidade, uma guerra religiosa entre católicos e protestantes. Mas não, por detrás das aparentes convicções religiosas estavam os interesses das grandes companhias de produção e distribuição de energia do centro e norte da Europa.

Hoje, os interesses são muito mais complexos e por isso a boutade de Jean Quatremer vem a despropósito. Como muito bem refere Slavoj Zizek, também convidado a enviar um depoimento para o The Guardian, o que se passa actualmente é que os grandes interesses do capitalismo global tomaram conta da Europa e dos seus governos, “as grandes corporações transnacionais, que não são eleitas, (a não ser pelos seus accionistas, acrescento eu), estão a ditar as políticas seguidas por governos democraticamente eleitos”. E o filósofo esloveno dá como exemplo as negociações para o tratado de comércio e investimento entre a União Europeia e os Estados Unidos da América, TTIP. E acrescenta que de um ponto de vista da esquerda poderia ser interessante uma grande e poderosa nação sair do controle da União Europeia para proteger o seu estado social e aplicar medidas anti-austeritárias. Mas hoje o nacional populismo de extrema-direita apresenta-se como o defensor dos direitos das classes trabalhadoras, numa lógica do nós contra eles, em relação aos estrangeiros, como foi sempre a linha de actuação dos nacionalistas. E Zizek lembra os casos de Mandela e Lula, eleitos há alguns anos com grande entusiasmo, prometendo um “novo mundo”, mas que no momento de ousarem interferir nos mecanismos do sistema capitalista se viram confrontados com uma aberta punição dos mercados. Ameaça que actualmente é ainda mais notória do que então. Como ultrapassar o dilema? É claro que não será apenas com os instrumentos de que dispõe o Estado-Nação, mas com um movimento transnacional e pan-europeu, a que Varoufakis também se referiu ao lançar recentemente o seu embrião de partido, DIEM. E termina com um trocadilho interessante: o socialismo nacionalista não é o meio apropriado para lutar contra a ameaça do nacional socialismo.

Não é por acaso igualmente que as principais centrais sindicais britânicas Unite, Unison e outras, com um total de 6 milhões de aderentes, apelam ao voto pela manutenção na União Europeia, pois que o governo conservador, no caso do voto pelo “Brexit”, se apressará a desmantelar os direitos laborais que ainda são respeitados por via dos tratados europeus. O mesmo fez o actual líder do Partido Trabalhista Jeremy Corbyn, que tinha sido até agora um eurocéptico.

Três dias depois do referendo sobre o “Brexit”, em 26 de Junho, haverá eleições legislativas em Espanha, onde o Podemos, aliado com o Unidos (que resultou do desmantelamento do PCE), defende uma política ao mesmo tempo soberanista e europeísta, conforme refere num artigo recente no El País o seu líder Pablo Iglesias. Sendo que a parte europeísta é associada aos direitos sociais, em que num novo modelo produtivo se aliariam forças políticas e sociais com sectores estratégicos do empresariado, tanto em Espanha como na Europa. Temos de convir que para chegar a este objectivo muito caminho terá de ser feito. Mas é isto que faz os nossos tempos interessantes e valerem a pena ser vividos.

Investigador em Relações Internacionais, antigo funcionário da Comissão Europeia

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