Tempos de cidadania

Há tempos, como os que vivemos, em que a intervenção cívica é uma obrigação.

O nacionalismo identitário dos anos 1930, que provocou a hecatombe europeia e que, na sua versão salazarista, envenenou a minha geração e semeou a guerra em África, está de regresso à Europa e ao mundo. Trump é a versão mais caricata dessa combinação de nacionalismo económico antiglobalização e afirmação de identidades excludentes, ódio ao cosmopolitismo e islamofobia, e derrotar o nacionalismo é o grande combate do nosso tempo.

Que os velhos partidos políticos estavam desacreditados já sabíamos, mas com o “Brexit” e a vitória de Trump tememos que o nacionalismo identitário era a alternativa que tudo ia submergir. Hoje, com a vitória de Macron e o sucesso de Jeremy Corbyn, mas também com a reação da sociedade civil americana às medidas reacionárias de Trump, afirma-se uma outra alternativa democrática que procura responder às mesmas ansiedades geradas por uma globalização mal regulada.

É pacífico realçar que os velhos sistemas de representação democrática, que deixavam pouco espaço à cidadania ativa, à participação, estão condenados. Os cidadãos eram sujeitos passivos, que votavam civicamente, embora sem alternativas claras, e que entre duas eleições eram esquecidos. O mesmo se passou na construção europeia, durante décadas um projeto tecnocrático com pouco espaço para os cidadãos.

A revolução da educação e da informação leva os cidadãos a questionar a hegemonia absoluta do espaço público pelos partidos. Agora mais informados e politizados, não aceitam o aumento brutal da desigualdade que a crise financeira de 2008 trouxe, e muito menos a descoberta de vastos interesses que corrompem a política (a perversão dos financiamentos nas campanhas eleitorais) e os políticos, que atinge muitas democracias, de que a brasileira é hoje o caso mais paradigmático, mas a que Portugal também não escapa.

Neste quadro, será que o intelectual comprometido é um “indignado” e cético de todas as alternativas de governo que o presente lhe pode oferecer? Vem isto a prepósito das reações descrentes ao que está a mudar diante dos nossos olhos, nomeadamente com os resultados das eleições francesas.

O que há de comum entre Bernie Sanders, Macron e Jeremy Corbyn é terem apoiado as suas campanhas em movimentos de cidadania ativa, à semelhança, aliás, do que fez Barack Obama. Foi apoiado em milhares de ativistas e de pequenos doadores que Sanders pode competir com a multibilionária máquina de Hillary Clinton — e seria provavelmente Presidente dos Estados Unidos se o Partido Democrata não tivesse feito tudo para sabotar a sua campanha. A mesma dinâmica de ativismos grassroots alimentou com sucesso a campanha de Corbyn. No caso de Macron, uma das razões de sucesso foi a sua capacidade para mobilizar sectores importantes da sociedade civil, de criar um movimento cidadão, nas ruinas dos partidos tradicionais.

Macron é de todos o que mais elaborou uma nova doutrina política, progressista na sua crítica do nacionalismo identitário, mas distante das velhas correntes marxistas, nomeadamente numa série de artigos que apareceram na revista Esprit. Nesses artigos, Macron afirmava-se seguidor do filósofo Paul Ricoeur, nomeadamente na defesa da necessidade de combinar a ética da responsabilidade, que obriga ao realismo político, com a ética das convicções que impõe a coerência com os valores que permite controlar os abusos de poder em nome do pragmatismo. Macron defende a necessidade de combinar abertura ao mundo com proteção social, para, como diz, “ao mesmo tempo” conciliar o rigor orçamental com “fazer mais para os que têm menos”, defendendo uma evolução da política europeia numa perspetiva mais solidária com as regiões mais desfavorecidas.

Tudo isso faz parte de uma tendência para o regresso à ideologia, contra uma visão tecnocrática de governo que abafa o debate das opções políticas e as sujeita às exigências do imediato. Em 2012, Macron escrevia na Esprit: “Num sistema democrático maduro, deliberativo, a ideologia é condição para a ação política, para que seja mais do que um conjunto de medidas; é a capacidade de propor outro mundo, de optar pelo tempo longo em nome dos princípios.”

Não sabemos se Macron terá sucesso, e existem certamente razões sérias para debater as suas medidas de conciliação entre liberalismo económico e justiça social, mas sabemos também que o debate é a essência da democracia, e que em democracia a oposição é condição essencial ao bom funcionamento das instituições, o que na actual situação francesa está longe de estar assegurado.

O sucesso e o insucesso, em democracia, não dependem da ação de um homem político, por muito dotado que ele seja — dependem da ação cidadã. É certamente assim nas grandes questões do nosso tempo, como as desigualdades sociais e a pobreza, a regulação do sistema financeiro, o ambiente, os direitos dos imigrantes e refugiados, o racismo, a segurança e a paz.

O terreno para a ação cidadã já não se circunscreve a fronteiras nacionais. Questões como a regulação do sistema financeiro ou as alterações climáticas exigem respostas globais. Para nós, europeus, isso significa ser capaz de agir a nível da União, criando uma cidadania europeia que tarda, mas sem a qual a derrota das alternativas nacionalistas em França e a esperança renascida no Reino Unido fracassarão.

Há tempos, como os que vivemos, em que a intervenção cívica é uma obrigação. É a mobilização da cidadania, da sociedade civil, que está a travar a vaga nacionalista, e poderá mesmo derrotá-la. Está aqui, talvez, a pista para compreender as surpresas, agora positivas, que estão a surgir um pouco por toda a parte. As notícias da morte da democracia e da União Europeia podem ser manifestamente exageradas.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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