Sobressalto cívico-cultural para a Europa

Quero acreditar que outro futuro para a União ainda é possível. Tal só se faz por via da cultura, onde a arte desempenha um papel cimeiro.

A ideia de uns Estados Unidos da Europa é antiga de séculos. De entre outros, Victor Hugo, Robert Schuman ou Jean Monnet defenderam este projecto de união de várias Nações com desideratos que, sendo distintos, passavam, no essencial, por manter a paz no continente e por reforçar os laços de solidariedade económica, política, social e cultural que tornasse a Europa mais forte em face dos blocos que se foram desenhando a Ocidente e a Oriente.

A visão lírica de Victor Hugo, que em si nada tinha de errada, padecia dos normais problemas de uma concepção mais voltada para a utopia que para a concretização prática. Do escritor e humanista temos todos gratas memórias, em especial os Portugueses que, ao abolirem a pena de morte em Oitocentos, receberam os maiores encómios deste vulto notável. Visões mais realistas como aquelas que deram origem à assinatura do Tratado de Paris e do de Roma, através dos quais se constituíram as então Comunidades Europeias (CECA, CEE e EURATOM), só vingaram devido às particulares condições históricas em que ocorreram. Certo é que, tirando os conflitos nos Balcãs, a Europa vive em clima de paz há cerca de 70 anos, o que nunca aconteceu na sua História.

A questão que todos nos colocamos é a de saber até quando este estado de coisas se manterá. O diagnóstico está há muito feito: o termo da “Guerra Fria”, a afirmação dos EUA como única superpotência global, a crise económica global, o desastre na intervenção síria e o afluxo massivo de refugiados à Europa, o populismo reinante, a crise das ideologias, a falta de verdadeiros homens e mulheres de Estado, são alguns dos elementos que precipitaram os egoísmos nacionais e a vontade de cerrar fronteiras. É evidente que uma política de directório não ajuda e faz os Estados menos poderosos economicamente descrerem no chamado “projecto europeu”.

Este é, para mim, o ponto nodal. Existe um “projecto europeu”? Uma Europa saída das cinzas da II Grande Guerra e que tinha de se organizar para aproveitar da melhor forma o “plano Marshall” – que, obviamente, na real politik, não foi nenhum acto de benemerência dos EUA, mas uma forma de encontrar mercados para escoar produtos –, viu-se forçada a experimentar um nível de integração económica que nunca vivera. A integração – ou coordenação – política foi sendo desenvolvida muito à custa de vultos como Kohl e Mitterrand, para além de um inefável Delors, mas creio que nunca foi verdadeiramente sentida, excepto por alguns – poucos – que apelidaríamos de “líricos”. O dito projecto é a quadratura do círculo de interesses antagónicos dentro e fora do Continente e tenta unificar uma história de guerras e desmandos, de diversas culturas e mundivisões. Ora, um projecto desta magnitude só vinga através da Cultura, ou seja, por via da partilha de valores comuns que nunca existiram verdadeiramente. Basta pensar na Política Externa e de Segurança Comum que só reafirmou o que já se sabia e é abundantemente repetido: a UE é um gigante económico, mas um anão político. E hoje já nem a gigantez da parte económica se verifica. A União nunca – ou quase nunca – conseguiu falar a uma só voz, o que a torna um parceiro pouco credível na cena internacional.

Sem pretender ser minimamente catastrofista, a União está cada vez mais desunida e arrisca-se a implodir se e na medida em que a axiologia partilhada pelos Estados-Membros não for reforçada. É também evidente que não podemos embarcar em concepções maximalistas e que só adiantam o caminho para o abismo, como seja a de que a UE deve ter uma política de imigração de totais portas abertas. O que não significa que nos fechemos sobre nós, mas que tenhamos de trabalhar com os regimes do Médio Oriente e com os EUA, em grande parte causadores da desgraça humanitária na Síria e nos países vizinhos. A Europa não pode ser responsabilizada pelos erros dos outros, mas também não deve isentar-se das suas próprias culpas. Muitas delas devidas a um alinhamento acrítico com o bloco americano, em virtude das dependências económicas do mesmo e que tanto têm provado bem desde a crise do subprime

Quero acreditar que outro futuro para a União ainda é possível. Tal só se faz por via da cultura, onde a arte desempenha um papel cimeiro. Só um sobressalto cívico pode acordar consciências e suscitar o debate. A Europa precisa de debater como de pão para a boca, ou de euros para a economia, se quisermos usar uma imagem mais na moda. Mantermo-nos amorfos enquanto os políticos se reúnem em encontros inconsequentes é o princípio – ou já o meio – do fim. É a hora dos cidadãos que se identificam com o diálogo na diversidade de culturas. Diz-se que as sociedades são cada vez mais multiculturais e multiétnicas, porém, na verdade, pouco sabemos uns dos outros e uma corrente de união entre os artistas europeus seria fulcral para conseguirmos não deixar o futuro europeu apenas nas mãos dos políticos. Trata-se de um assunto demasiado importante para tal.

Quando eles e elas sentirem que as pessoas concretas não querem o caminho para o qual estamos a ser empurrados, o desejo de manutenção nos cargos e a luta pelo poder levarão a que a Europa retroceda ao modelo inicial. A reflexão artística é aquela que melhor expõe as fragilidades dos sistemas sociais, pela crítica, pela caricatura, pelas perguntas aparentemente “ingénuas” ou sarcásticas. A arte coloca a vida em estado exposto, de modo que nenhum de nós pode a ela ser indiferente. Mais que os discursos, a prática artística provoca sobressaltos e impele-nos a ver a realidade com outros óculos. Este é o repto que nos é lançado. Não é pequeno. É um programa de vida.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Consultor da Abreu Advogados

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