Seis dias para lutar pelo Rio de Janeiro

Crivella é um homem perigoso. Quer ver as igrejas evangélicas presidirem ao Brasil e ao mundo

1. No próximo domingo os cariocas vão escolher o prefeito da cidade, e quem está muito à frente nas sondagens é um homem perigoso, aparentemente na posse das suas faculdades mentais, e portanto imputável, que quer mais do que o Rio de Janeiro: ver as igrejas evangélicas presidirem ao Brasil e ao mundo. Então, neste Outono geral do planeta, ainda antes de Trump ser impedido de chegar à Casa Branca, há isto: os cariocas darem o fora em Marcelo Crivella, o homofóbico, sexista e boçal bispo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), cantor religioso best-seller, e sobrinho do fundador Edir Macedo.

2. O presente é de farsa. Se há oito anos seria impossível imaginar Trump como presidente ideal de tantos milhões nos EUA, quem imaginaria um Crivella prefeito do Rio de Janeiro? No momento em que escrevo, ele está com 46 por cento nas intenções de voto, 15 mais do que Marcelo Freixo (PSOL), o candidato agora apoiado por toda a esquerda, e prevêm-se acima de 20 por cento de votos brancos/nulos. Sinal de como para tanta gente o ódio à esquerda, consubstanciada no PT, conta mais do que o medo da ignorância virulenta, e do controle totalitário da IURD. Conheço em carne e osso cariocas que votaram Freixo na primeira volta, não-religiosos, não conservadores nos costumes, com gente muito próxima LGBT, que agora não vão impedir Crivella de ganhar porque para isso teriam de votar Freixo, e nesta segunda volta Freixo é apoiado pelo PT. Não têm nada a apontar-lhe, reconhecem que é sério, mas o bicho-papão em que o PT está transformado (por culpas próprias e alheias) sobrepõe-se a tudo. O problema desta eleição são, assim, dois: tanta gente acreditar em Crivella; e tanta gente que não acredita em Crivella ter demasiado medo/ódio do PT. Não é um exclusivo do Rio de Janeiro. Parece mais uma tendência do presente. Talvez o futuro seja da guerrilha.

3. Crivella. Já o viram e ouviram? Farsa, só que em risco de ter consequências na vida de milhões, como Trump. A vantagem de Trump, do ponto de vista da Humanidade, é que atrás de Trump só há Trump: ele acredita apenas nele mesmo, o que facilita as coisas quando o balão esvaziar (e a esta distância das eleições o que resta a quem não vota nos EUA é torcer para que esvazie). Já Crivella, é o farsante no palco com um polvo nos bastidores, incluindo um conglomerado de comunicação liderado pela TV Record. Age como uma marioneta do divino para o controle dos homens, sempre na expectactiva de que os homens controlem as mulheres, e os gays se convertam a homens.

4. “A mulher não é uma costela do homem?”, pergunta o bispo Crivella, ufano, radiante, mãozinha a abanar, num dos seus vídeos de pastor negacionista, de Darwin e do conhecimento. “É ou não é? As mulheres deviam até obedecer mais aos homens porque afinal de contas são um pedaço dos homens.” O mesmo nível alarve com que trata a homossexualidade: ora um “mal terrível”, ora consequência de abortos mal-sucedidos.

5. Há 14 anos que este homem é senador no Brasil, faz parte do “boom” de poder das igrejas evangélicas, de que Lula tirou alianças quando lhe conveio, sem acautelar como isso cairia na cabeça de toda a esquerda, do país em geral. Mas o que Crivella conta num vídeo de 2011, agora recuperado pelo “Globo” (empresa rival da Record), foi que se tornou político por exigência da IURD, e contra-vontade, depois de seis anos em missão africana e três no sertão baiano. “Confesso que naquele instante fiquei triste. Aceitei porque na Igreja Universal você não tem opção. Na Igreja Universal (...) você vai, tem que ir”, diz na gravação, feita durante um encontro com colegas da Assembleia de Deus. Conta que no dia em que a IURD lhe pediu isso fez uma oração, pensou que “não tiraria um filho do altar para a política”, mas que depois de eleito percebeu a importância da nova missão e viu que “estava equivocado”. Ao divulgar este vídeo agora, o “Globo” lembra que na actual campanha Crivella tem prometido que a IURD e todas as outras igrejas teriam “influência zero” na sua gestão, pois o “Estado é laico”. Mas nesse vídeo, entre pastores, a versão dele é outra: “Vocês podem ter certeza: os evangélicos vão crescer na política, todos eles. Nós temos jovens, meninos, o filho do pastor Everaldo [deputado Filipe Pereira, secretário do governo do Rio] é uma esperança. Um dia esta nação vai eleger um presidente evangélico (…) E aí, queridos irmãos (...) nós poderemos ser a igreja evangelizadora dos últimos dias e levar o evangelho a todas as nações da terra.”

6. Mais pérolas do bispo Crivella:
— “Qual é a raça que tem igrejas fortes como as nossas, que tem recursos, que tem rádio, que tem televisão, que tem avião, que tem helicóptero? Qual é a raça que pode entrar em qualquer país senão o Brasil e os brasileiros?”

— Ou: “Já vieram maremoto, terremoto, corrupção, pecado, Sodoma e Gomorra em dimensão planetária, que é a ‘infernet’. O espírito santo vai fazer uma obra grande e haverá na nossa geração uma batalha final.”

— Ou: “Os evangélicos ainda vão eleger um presidente da república que vai trabalhar por nós e por nossas igrejas. E nós vamos cumprir a missão que há dois mil anos é o maior desafio da igreja, de levar o evangelho a todas as nações da terra.”

Lula abriu-lhe portas, conta: “Eu disse, presidente, me dá uma carta sua, me apresentando aos presidentes desses países onde as igrejas estão com problemas. E ele me deu, escrita à mão, e os presidentes me receberam.” Em Barbados, na Zâmbia. “Abri uma igreja em Lusaka, e os pastores haviam sido expulsos de lá. Com a carta do presidente Lula, não só os pastores puderam voltar como o presidente Rupiah Banda deu a eles uma concessão de rádio e televisão para que pudessem pregar o evangelho.”

7. Quando Marcelo Freixo disputou a prefeitura pela primeira vez, em 2012, eu morava no Rio de Janeiro. Eduardo Paes ganhou com dois terços mas a campanha de Freixo levantou uma nova geração carioca de esquerda, ao mesmo tempo que conseguiu envolver apoiantes lendários do PT, como Chico Buarque. Enquanto deputado, Freixo trabalhou incansavelmente em várias frentes, foi o líder da comissão de inquérito sobre as milícias, indiciando mais de 200 responsáveis, afrontando “bandas podres”. Passaram anos; o país polarizou-se numa tensão que tanto foi o resultado como alimentou a trama em que o governo de Dilma caiu e Temer ocupou o poder; e Freixo continua na luta. Ontem, em entrevista à “Folha de S. Paulo”, ele disse, e vale a pena sublinhar: “É importante que o PSOL não cometa os erros que o PT cometeu. Podemos herdar os votos, mas temos que ir além. Para ganhar a eleição no Rio, a gente precisa do voto ético, democrático, que não é necessariamente de esquerda.” Não é impossível, os 46 por cento de Crivella já são uma queda relevante em relação à sondagem anterior.

8. Aquilo a que um amigo carioca chama “trabalho de formiguinha” para os próximos seis dias: convencer cada temeroso de que Freixo não representa um “perigo bolchevique”. Muitos fantasmas estão de volta em 2016. Crivella diz que o Rio de Janeiro não é a cidade dos “black blocs”, dos “cracudos” e das “balas perdidas”. Mas o Rio de Janeiro é a cidade de tudo isso, e o facto de Crivella não perceber como e porquê mostra apenas que o Rio de Janeiro não é a cidade dele, tal como este mundo não é do seu reino. Aliás, é disso que a IURD vive.

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