“Se o partido for pela via da confrontação, não conseguirá governar”

O poeta estava descalço, num sofá velho, num lugar imaculado com retratos de Aung San Suu Kyi, líder da Liga Nacional para a Democracia. Falava devagar. Escolhia cada palavra. Tem 71 anos, mais um mês e um dia do que a líder do seu partido. Já esteve num interminável silêncio, numa cela, com pouco mais do que chão. Durante dois anos, nem livros.<_o3a_p>

O Presidente da República, Htin Kyaw, preparava-se para o anúncio oficial. No fim do Festival da Água, que se celebra na segunda semana de Abril, seriam libertados 83 presos. Tudo para “fazer as pessoas sentirem-se felizes” e promover “a reconciliação nacional”.

O poeta, Aung Shin, reconhecer-se-ia naquela urgência: “Não são criminosos. Foram presos por causa da sua consciência, do seu pensamento, da sua opinião. Muitos membros do partido sabem o que é isso. Metade do Parlamento esteve na prisão.” Aung Shin conhece a história de cada um. É membro do Comité Central. Dirige o jornal oficial do partido, o D-Wave. Luta pela democracia desde que a ditadura foi instaurada, em 1962.

Nunca esqueceu os protestos reprimidos com violência na Universidade de Rangum, em 1962. Os estudantes mortos. Os estudantes presos. As regras a apertarem no campus. A associação de estudantes a ser ilegalizada. Os estudantes a trocarem o protesto aberto pela actividade clandestina. Em 1963, a polícia foi buscá-lo à residência de estudantes. Três anos preso.<_o3a_p>

Naquela altura, a Birmânia fechou-se ao mundo. A tentar encontrar formas de se exprimir, uma nova geração de poetas brotou. Aung Shin foi um dos líderes do Movimento Poético Moe Wai, que procurou o ritmo da rua, debruçou-se sobre as duras condições de vida, reclamou democracia. Para publicar um livro era preciso submeter três cópias à censura e uma biografia detalhada. A poesia de Aung Shin foi proibida entre 1976 e 2010. Circulava às escondidas.

Em 1988, um novo protesto propagou-se pelo país. Uma vez mais, a resposta foi violenta. Militares substituíram militares. Ainda houve uma certa ilusão de abertura. Nasceu a Liga Nacional para a Democracia. Aung Shin envolveu-se no partido. Prenderam-no depois das eleições de 1990, cujos resultados nunca foram reconhecidos pelos militares. Mais quatro meses preso.

Da terceira vez, decorria 1997. “Havia uma série de reuniões em Rangum. Queriam evitar que participasse. Levaram-me para um campo de concentração. Estive lá cinco meses”, contou-nos, com recurso a uma intérprete de birmanês-inglês, na apertada sala de visitas do jornal, no rés-do-chão de uma movimentada rua, na periferia da cidade de Rangum.

Tornaram a encarcerá-lo em 2000. Emitira uma declaração sobre a prisão de Suu Kyi. Nem se mexeu ao ouvir a sentença: 21 anos de prisão. “Estava preparado. A minha convicção é que o destino de todos os povos é a democracia. Nunca tive pena de ser preso. Fazia parte. Vi muitos colegas na prisão. Muitos amigos também...”

Não faz de conta que nada foi. “Foi um tempo terrível”, afirmou. “A maior parte das vezes, estava sozinho na cela. Dormia no chão de madeira. Tinha um cobertor muito sujo. Quando pude contactar a família, mandaram-me algumas coisas. Nos primeiros dois anos, nem podia ler. A comida não era boa. Não tinha rede mosquiteira. Só em 2006 consegui ter uma. Estava quase a ser libertado. Saí em 2009. ”

Há cinco anos que o país está em trânsito da ditadura para a democracia. “Chegou a hora da liderança de Aung San Suu Kyi.” Prioridades? "Há muitas, mas gostava de dizer três: fazer a reconciliação nacional, alcançar a paz entre os diferentes grupos étnicos, o respeito pelos direitos de cada um; caminhar para um sistema federal; ter uma constituição democrática.”

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Se não se puder chegar a um acordo entre militares e civis não será possível alterar a Constituição. Precisamos de um bom relacionamento civil / militar.

O Partido Nacional para a Democracia nunca pegou em armas. Tem uma história de luta pacífica”, lembrou. “Poder-se-à falar em poder duro, musculado, e em poder suave, delicado. Suu Kyi exercerá poder de forma suave. Essa é a convicção do partido. Confrontar os militares seria perigoso. Se o partido for pela via da confrontação, não conseguirá governar.”

A Constituição, escrita e aprovada pelos militares, obriga à partilha de poder. “Queremos emendá-la, mas não podemos fazê-lo de imediato”, admitiu. “Os militares não estão interessados. Será preciso fazer um amplo debate. As pessoas conhecem a resistência dos militares, terão de ter paciência, de esperar para que o processo possa seguir passo a passo.”

Dias antes, numa mesa redonda organizada pelo Instituto Nacional para a Democracia e a Assistência nas Eleições, Aung Shin revelara esperança numa eventual pressão externa. A ajuda de actores internacionais é essencial. Precisamos de uma melhor relação entre militares e civis”, defendera o poeta. E Tin Maung Oo – que serviu o Exército em vários regimentos de Infantaria e entre 2010 e 2015 representou o Partido União, Solidariedade e Desenvolvimento no Parlamento – concordara: “Se não se puder chegar a um acordo entre militares e civis não será possível alterar a Constituição. Precisamos de um bom relacionamento civil / militar.”<_o3a_p>

Nessa mesa redonda, fora reconhecido o caminho percorrido nos últimos cinco anos – a abolição da censura, a libertação de centenas de presos políticos, a realização de eleições credíveis. Abordar temas de religião e política continuava a ser muito delicado, declarara Kyaw Swa Swa, director do Instituto de Myanmar para a Democracia, que monitorizou a cobertura noticiosa das eleições gerais de Novembro. Não só pela auto-censura. Pela legislação.

Quando o novo Governo tomou posse, a 31 de Março, para além de 121 presos políticos, haveria cerca de 320 pessoas acusadas de delitos de consciência. “Há três maneiras de libertar presos, de acordo com a Constituição”, explicou o velho Aung Shin. “Podem ser libertados por decisão judicial, por via da lei. Podem ser libertados pelo Presidente, através do indulto. Podem ser libertados por acordo do Conselho de Segurança, composto por cinco militares e quatro civis. O partido seguirá dois caminhos: o indulto e a mudança de leis.” Naquele mesmo dia, 8 de Abril, o Presidente proclamou o perdão a 83 presos políticos, que seriam libertados por altura do ano novo birmanês, que se celebraria a 17 de Abril. Na véspera, Suu Kyi anunciara que seriam retiradas as acusações feitas a dezenas de estudantes que estavam detidos desde os protestos estudantis de 2015. Uma nova era tinha começado.

A jornalista viajou a convite do European Journalism Center 

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