Sanders chega a Filadélfia de cavalo branco e resgata o Partido Democrata de uma convenção desastrosa

Apoiantes mais fervorosos do senador do Vermont passaram a noite a vaiar oradores, mas o seu apoio a Clinton foi claro e recebido com algumas lágrimas: “Qualquer observador concluirá que, com base nas suas ideias e na sua liderança, Hillary Clinton deve ser a próxima Presidente dos Estados Unidos.”

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AFP/SAUL LOEB

Por algum mistério que escapa à compreensão de quem acompanha as eleições nos Estados Unidos nem que seja apenas de relance, muitos apoiantes de Bernie Sanders ainda esperavam que o seu candidato desse uma pirueta em plena convenção do Partido Democrata e não apoiasse Hillary Clinton. Mas, tal como se esperava, não foi isso que aconteceu: com um discurso em que foi mais longe do que apenas comparar Clinton a Trump, o senador do Vermont deixou claro que a candidata é mais do que qualificada para ser Presidente dos Estados Unidos e pode ter resgatado muitos dos seus apoiantes que estavam na equipa da hesitação para a equipa de Hillary Clinton, nem que seja enquanto engolem um sapo do tamanho de um elefante.

O primeiro dia da convenção do Partido Democrata, que vai decorrer até quinta-feira em Filadélfia, no estado da Pensilvânia, começou com uma gigantesca manifestação de apoiantes de Bernie Sanders – a maioria do movimento Bernie or Bust, que despreza ainda mais Hillary Clinton, a quem acusam de estar comprometida com os banqueiros de Wall Street, do que Donald Trump, o nomeado do Partido Republicano que promete deportar 11 milhões de imigrantes sem documentos, construir um muro na fronteira com o México e acabar ou refazer a NATO à sua medida.

O ruído nas ruas de Filadélfia chegou ao interior do pavilhão Wells Fargo, e muitos dos 1846 delegados que estavam lá para apoiar Sanders passaram grande parte da noite a vaiar passagens de vários oradores, conseguindo enervar a responsável pela condução dos trabalhos, a congressista Marcia Fudge: “Desculpem. Quero respeitar-vos e quero que vocês me respeitem. Somos todos democratas, temos de agir como tal!”

Mas a noite ia passando e não havia meio de os democratas se unirem. No ar do pavilhão aparecia o fantasma do senador republicano Ted Cruz, que na semana passada foi a Cleveland e saiu do palco a gritos de “traidor”, sem recomendar o voto no nomeado do seu partido, Donald Trump. Aqui em Filadéfia o Partido Democrata também teme que a sua convenção mostre ao país que está dividido e que um dos oradores seja corrido do palco por uma vaia monumental.

Só que o problema do Partido Democrata é outro: enquanto o Partido Republicano está dividido, mas tem a maioria dos seus delegados ao lado de Trump, no Partido Democrata é a minoria quem mais ordena, com um poder aumentado pela televisão e pelas redes sociais.

Foi preciso a humorista Sarah Silverman subir ao palco para que os delegados de Sanders mais ruidosos fossem confrontados com a dura realidade do menor dos dois males. “Posso só dizer uma coisa? Ao pessoal do [movimento] Bernie or Bust: vocês estão a ser ridículos!”, disse Silverman, uma das personalidades do mundo do espectáculo que mais apoiou Bernie Sanders durante as eleições primárias.

 

 

A partir desse momento, e apesar de se continuarem a ouvir gritos de “Bernie!” e “Não ao TPP”, o ambiente na convenção mudou um pouco, até porque estava quase na hora dos discursos mais importantes da noite.

Enquanto a convenção do Partido Republicano em Cleveland pareceu mais uma festa reservada à família de Donald Trump e aos funcionários das suas empresas, que ia sendo furada, de vez em quando, por mais familiares de Donald Trump e outros funcionários das suas empresas, o primeiro dia da convenção do Partido Democrata acabou como se fosse um festival de Verão recheado de rock stars: Michelle Obama; a senadora Elizabeth Warren, uma das figuras mais progressistas do Partido Democrata; e o próprio Bernie Sanders.

A mulher do Presidente dos Estados Unidos fez um discurso apontado ao coração e de total apoio a Hillary Clinton, com algumas referências a Donald Trump sem nunca ter proferido o nome do candidato do Partido Republicano.

Numa referência directa ao passado político de Clinton e uma indirecta à frase de campanha de Trump (Make America great again), Michelle Obama foi responsável por um dos momentos mais pungentes do primeiro dia da convenção do Partido Democrata: “Eu acordo todas as manhãs numa casa que foi construída por escravos. Vi as minhas filhas, duas jovens negras lindas e inteligentes, a brincar com os seus cães nos jardins da Casa Branca. E por causa de Hillary Clinton, as minhas filhas — e todos os nossos filhos e filhas — dão como garantido que uma mulher pode vir a ser Presidente dos Estados Unidos. Por isso, não deixem que ninguém vos diga que este país não é grande e que por alguma razão temos de fazer com que ele seja grande outra vez. Porque este é o maior país do mundo.”

Ninguém sabe — e, se diz que sabe, mente — qual será a reacção dos apoiantes mais fervorosos de Bernie Sanders até ao fim da convenção. Mas depois de uma semana em que o Partido Democrata deu mais um tiro no pé quando foi revelado que houve conversas para sabotar a campanha de Sanders, reveladas pela organização WikiLeaks, a primeira noite da convenção acabou por deixar a ideia de que a franja mais intransigente pode vir a diminuir — como disse a humorista Sarah Silverman no final dos discursos: “Se nem o Bernie conseguir convencer os seus apoiantes, quem é que vai conseguir?”

Um discurso sem "mas"

O alinhamento dos discursos da primeira noite teve o claro objectivo de tentar acalmar a ala mais progressista, com a mensagem de que o momento é sério e chama-se Donald Trump. Depois de Michelle Obama e do seu discurso poderoso mas intimista, entrou a senadora Elizabeth Warren, que chegou a ser referida para candidata a vice-presidente e que foi em tempos uma espécie de Bernie Sanders antes de Bernie Sanders aparecer em cena — no início de 2015, era ela a preferida da ala mais progressista para enfrentar Hillary Clinton nas primárias.

Warren, que tem travado uma luta intensa com Donald Trump em discursos e no Twitter, também deixou o argumento de que o risco é grande demais este ano. Mas fez mais do que isso, e ouviram-se alguns gritos como “Confiámos em ti!” por parte dos delegados mais leais a Sanders.

“De um lado está um homem que herdou uma fortuna do pai e que a manteve a enganar pessoas, a não pagar dívidas. Um homem que nunca sacrificou nada por ninguém. Um homem que apenas se preocupa com ele próprio, a cada minuto de cada dia. Do outro lado está uma das mulheres mais inteligentes, duras e tenazes deste planeta, uma mulher que luta pelas crianças, pelo sistema de saúde, pelos direitos humanos — uma mulher que luta por todos nós e é suficientemente forte para ganhar essas lutas. Estamos aqui hoje, porque a nossa escolha é Hillary Clinton. Eu estou com a Hillary. Eu estou com a Hillary. Eu estou com a Hillary.”

Não houve nenhum “mas” no discurso de Elizabeth Warren, nenhuma mensagem que pudesse ser percebida como uma recomendação de voto em Hillary Clinton apenas e só porque Donald Trump é pior — o mesmo tipo de argumento que muitos líderes do Partido Republicano têm usado para justificar o seu apoio relutante ao candidato.

Mas o melhor da noite para o Partido Democrata ainda estava para chegar: o homem do momento, o senador Bernie Sanders, tinha nas mãos o poder de convencer alguns dos seus apoiantes que o seu movimento conseguiu empurrar o partido um pouco mais para a esquerda, ao incluir no programa a defesa do aumento do ordenado mínimo para o dobro, de 7,5 dólares por hora para 15 dólares; e universidade grátis para as famílias com menos rendimentos, entre outros exemplos. Mas também podia facilmente ter incitado ainda mais os ânimos, se adoptasse uma postura à Ted Cruz: votem segundo a vossa consciência.

Não foi isso que aconteceu. Sanders tentou explicar aos seus apoiantes que um movimento não é um monumento e que para se mover é preciso dar um passo atrás do outro — foi como se o senador estivesse a tentar acalmar o motim que ele próprio incitou, mas sem o qual nunca teria obtido as conquistas progressistas no programa do partido. É complicado, como diria no Facebook. E deixou muitos dos seus apoiantes em lágrimas.

Depois de ter sido recebido com a maior ovação da noite — cerca de três minutos de vivas e aplausos —, Bernie Sanders começou por salientar o esforço e a dedicação dos seus apoiantes, passou a explicar as conquistas que tinham alcançado, partiu para o discurso do medo em relação a Trump e foi deixando bem claro que Clinton não é apenas o mal menor: “Qualquer observador concluirá que — com base nas suas ideias e na sua liderança — Hillary Clinton deve ser a próxima Presidente dos Estados Unidos. A escolha não tem nenhuma comparação.”

“O nosso trabalho agora é garantir que o nosso programa político seja aplicado por um Senado democrata, uma Câmara dos Representantes democrata e por uma Administração Clinton. Eu vou fazer tudo o que puder para isso acontecer”, disse ainda Bernie Sanders.

Dois minutos depois, já Donald Trump reagia no Twitter, tentando puxar para o seu lado quem se sente desiludido com Bernie Sanders ou mesmo traído pelo seu apoio tão claro a Hillary Clinton: “Triste ver o Bernie Sanders a abandonar a sua revolução. Damos as boas-vindas a todos os eleitores que querem consertar o nosso sistema fraudulento e ter os nossos empregos de volta.”

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