Sai da toca, Brasil (2)

“A geração nova e negra que está criando novas possibilidades, ao mesmo tempo continua sendo violada e assassinada pelo Estado. Ainda é aquela que não tem o seu direito à vida e à segurança."

1. O carioca Bruno F. Duarte, 28 anos, é um negro, de cabeleira afro irradiante, uma coroa. A primeira vez que o vi foi há anos, mas nunca lhe tinha perguntado como se define, mestiço, mulato, crioulo, negro. Em Portugal, provavelmente seria descrito como mulato, mas na geração de Bruno, no Brasil, a palavra é rejeitada pela carga histórica negativa (“mulato vem de mula…”), em benefício de uma afirmação negra colectiva. “Eu sou negro”, foi a resposta de Bruno, sem hesitação, quando lhe liguei hoje só para tirar essa dúvida. O tom de Bruno é suave, quase baiano, mas as palavras dele são firmes, como se o que ele diz já estivesse sendo pensado há muito.

2. Bruno cresceu no Centro do Rio de Janeiro, e o Rio é uma daquelas cidades brasileiras em que o Centro faz parte da periferia, no sentido de populações que foram ficando na margem dos centros em que tudo se jogava e decidia. No Centro do Rio, nas últimas décadas, têm morado sobretudo pobres, favelados, sem tecto, com algumas bolsas de classe média-baixa pelo meio. Bruno morou em vários lugares do Centro, como o bairro portuário do Santo Cristo, ou o Morro da Providência, a favela mais antiga do Rio de Janeiro, onde nos últimos anos a prefeitura fez centenas de remoções, no quadro geral do projecto Porto Maravilha, no quadro geral da preparação para a Copa e Olimpíada. Bruno morava numa parte que não chegou a ser removida. Hoje mora em Santa Teresa, um morro junto ao Centro que é uma mistura de tudo, talvez como nenhum outro do Rio de Janeiro: tem pergaminhos históricos e lutas de tráfico, vida cultural e boémia, residentes antigos e turistas, favelas e mansões. Bruno estudou Comunicação na PUC, universidade católica, privada, cara e uma das melhores do país. Faz parte de uma geração de bolseiros integrais, vindos das margens, que teve acesso à melhor educação universitária possível no Brasil. Trabalha na sede carioca de uma grande organização internacional de direitos humanos.

3. Como quase toda a gente que ele conhece, Bruno assistiu à votação dos deputados no Congresso para aprovar o impeachment contra Dilma, por 367 votos em 513. “Não é que eu não achasse que isso não fosse acontecer, mas ainda tinha uma esperança que não. Mas eles se sentiram inteiramente confortáveis de colocar ali todo o ódio, todo o preconceito, todo o racismo escravocrata colonial, que está no cerne da construção brasileira. Todos aqueles homens brancos mais velhos pareciam o que há de mais arcaico, mas não só, porque tem uma reverberação na sociedade. E isso estava sendo escancarado. Virou um grande show para inflamar a população.” Não é que estivessem calados antes. “Eles são os que têm a cara de pau, o senso de impunidade. O Bolsonaro [que na sua declaração de voto saudou o golpe militar e o torturador símbolo da ditadura] já era um violador dos direitos humanos. Já se sabia que este era o Congresso mais conservador desde a ditadura. O que assusta é a falta de vergonha, incluindo toda a auto-referencialidade, à filha, à prima, num espaço que devia ser para discutir a agenda pública.” Para quem assistiu, não foi uma surpresa em relação a este ou aquele, mas como se pela primeira vez o Brasil visse o colectivo do que são os deputados da nação, o nível a que desceu a representação do país. “Nos bares, na rua, toda a gente estava assistindo. Aquilo era um palanque.” Milhões de whatsapps se cruzando nos ares, comentando. Aí, Bruno recebeu um de uma amiga que dizia: “Tenho medo do que nos espera.” E o que ele estava a achar era o contrário. “Já estavam ali há muito, só colocaram a cara ao vivo na TV para milhões.” O que fazer, então, agora?

4. Essa é a grande discussão em curso, entre quem nunca se sentiu representado, e nesta votação de 17 de Abril viu como não estava sendo representado. “O processo eleitoral no Brasil é muito precário, a maioria dos deputados são ‘puxados’ por votos de outras pessoas. Claro que eles não representam, como é que um monte de homens brancos vai representar uma maioria que não é branca, e não é masculina?” Mas para mudar isso, há que mudar as bases, discutir tudo. “E há pouco espaço para um debate franco e justo porque os meios de comunicação são parciais, aprovam esse golpe, as famílias proprietárias têm a mesma origem daqueles que estão no Congresso.” Por isso, surgiram e estão a surgir canais de comunicação dentro da favela. “Tem todo um movimento de a favela se narrar, tanto para o que acontece lá dentro como para uma mobilização. E com as demissões em massa nos media tradicionais também tem muitos jornalistas [fora da favela] se repensando.” Bruno cita o exemplo da Pública — Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo (http://apublica.org) como uma das novidades relevantes dos últimos anos, plataformas que acham financiamento na Internet, conseguem bolsas para jornalistas pesquisarem. Com a explosão nas ruas em Junho/Julho de 2013, outros veículos apareceram ou foram reforçados, a Mídia NINJA é só o símbolo mais conhecido. “Deu uma contribuição gigantesca ao popularizar a transmissão em streaming, outra forma de olhar os protestos. Porque tradicionalmente a mídia brasileira está concentrada em dez famílias.”

5. A Internet, os novos media, tudo isso potenciou as periferias, pôs em rede quem não tinha acesso e estava desligado. Mas também a universidade, e além. “O aumento do número de universidades, e passar a ter muito mais negros nas universidades [com a política de cotas], isso já traz uma possibilidade de mudança. E agora já tem mais de uma geração de jovens que são o fruto dessas políticas, e do esforço das famílias. Há desafios novos dentro das faculdades, e, para além do espaço académico, uma rede de ajuda, movimentos de produção artística, cultural, independente, de ocupação de novos espaços da cidade.”

6. E a entrada nas instituições políticas? “Talvez não na política como a gente conhece hoje. As manifestações de 2013 disseram isso, que esta forma de fazer política não se adequa ao que a gente vê como representatividade. Há quem ache que o jeito é se candidatar pessoalmente, eu não acho. Acho que é corajoso o facto de alguém com um histórico de militância se dispor a disputar as estruturas por dentro, mas é preciso ter muita coragem e estômago.” E isso leva Bruno a um paradoxo brasileiro: “A geração nova e negra que está criando novas possibilidades, ao mesmo tempo continua sendo violada e assassinada pelo Estado. Ainda é aquela que não tem o seu direito à vida e à segurança. Então tem um receio, uma desconfiança em relação a chegar perto das estruturas tradicionais: porque o Estado continua nos considerando inimigos.” E por isso, entrar ou não nas instituições políticas, diz Bruno, “é uma questão que está colocada desde os grandes protestos de 2013, e que agora ficou mais urgente, muito inflamada”, depois da votação no Congresso. “As pessoas já estão inseridas num contexto diverso de mobilização. Há muitos jovens negros se empoderando também a partir da estética, festas, celebração do próprio corpo. Eu acho o empoderamento através da estética política também. Neusa Santos Sousa abre o seu livro Tornar-se Negro dizendo que ‘uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo’. Há um debate sobre como se avança contra os mecanismos conservadores de perpetuação do racismo e das desigualdades, e é fundamental que nessa discussão não retrocedamos ao estágio onde não tínhamos a possibilidade de falarmos sobre nós mesmos. Para isso precisamos ir além.”

(continua)

Sugerir correcção
Ler 10 comentários