Rascunho de uma leitura “político-social” do “Brexit”

Não há democracia nem humanismo que resista ao olvido de milhões de seres humanos, cheios de razões e com uma boa parte da razão.

1. Na semana passada, dei nota de como o interesse geral britânico foi hipotecado às mais funestas e despudoradas ambições e invejas pessoais. Faltava a essa nota o conhecimento – embora já lá morasse a suspeição – de que, no melhor estilo da tragédia shakespeariana, até Boris Johnson acabaria esventrado pelo seu mais directo aliado, Michael Gove (a quem, de resto, não falta uma mulher com os soturnos requintes de Lady Macbeth). Tu quoque Michael?

2. Decerto bem mais importante é tentar compreender algumas das linhas de fractura “política” e “social” e “político-social” do referendo britânico, seguramente mais na tradição de um Montesquieu e de um Tocqueville do que de um Marx. Para isso, temos de convir – ainda que à guisa de mero esboço ou arrazoado – em duas ou três asserções, tiradas das primeiras “conclusões” de sondagens, estudos de opinião e outros instrumentos sociológicos. Parece claro haver um conflito geracional: as gerações mais jovens preferiam permanecer na União Europeia, as gerações mais idosas queriam sair. Parece também cristalino que subsiste uma tensão social: num país altamente assimétrico, as classes mais favorecidas economicamente e mais esclarecidas culturalmente votaram pela manutenção, as classes mais pobres e desfavorecidas e com menos acesso à educação e à cultura optaram pela separação. Finalmente, também parece haver uma fissura relativamente óbvia entre a população cosmopolita urbana (designadamente da Grande Londres) e a população dos subúrbios industriais abandonados, do interior e do mundo rural. As votações na Escócia e na Irlanda do Norte têm razões muito próprias – que merecem uma análise detalhada e separada – e põem problemas políticos muito mais graves e sérios do que a negociação do tão falado acordo económico. O País de Gales, agora nas bocas do mundo por causa do omnipresente futebol, carece de uma explicação particular, pois aí abundam também motivos singulares. Mas hoje, deixemo-nos ficar pela leitura mais geral – a tal “político-social” – que, ao fim e ao cabo, se aplica basicamente à Inglaterra e não tanto aos outros países que formam o Reino Unido. Curiosamente, e como procurarei defender, aplica-se à Inglaterra como se aplica ao resto da Europa e ao mundo ocidental em geral.

3. Se procurarmos fazer um cruzamento, mesmo que tosco, daquelas três linhas de fractura, aquilo que obtemos é um conflito entre dois mundos. Dois mundos, note-se, que não são duas “classes” no sentido “marxiano”. São bem mais do que isso, correspondem a duas “representações” do mundo e da vida ou do “mundo-da-vida” (Lebenswelt). De um lado, um mundo globalizado, viajado, com literacia digital, cosmopolita, aberto, com rendimentos suficientes para ter uma vida decente (ou que, pelo menos, o sujeito considera “interessante” e “prometedora”). Do outro lado, temos um universo de gente que foi sendo excluída pela globalização e pela deslocalização, que não sabe usar um computador, nem recorre ao “facebook”, ao “airbnb” ou à “uber”. São trabalhadores que perderam o emprego ou qualidade no emprego com a “terciarização” e “financeirização” da economia e que viram na entrada de imigrantes a chegada de mão-de-obra barata, que baixava os salários e diminuía os postos de trabalho. Aqui está também a classe dos pensionistas, por natureza receosa e insegura, e que, durante a crise, foi fortemente abalada pela ideia de insustentabilidade da segurança social ou pela volatilidade dos fundos de pensões.  

4. A descrição feita nestes termos é assaz perigosa porque apela a uma valoração moral ou, no mínimo, estética. Os cosmopolitas abertos seriam obviamente os “bons” e os “belos” da história, que estão do lado certo da modernidade, e os info-excluídos e isolacionistas seriam os “atrasados” e os “feios” da narrativa, que engrossariam as forças telúricas do conservadorismo. A primeira obrigação de quem queira aqui fazer alguma leitura social e política, com proveito e com honestidade, é abster-se desse preconceito moral, cultural, social e estético. E aceitar, de uma vez por todas, que, de facto, a globalização, a multiplicação da mobilidade e a desterritorialização estão a criar estas duas forças de tracção e que os que estão em aparente perda têm de encontrar uma resposta política para essa perda e, em particular, para o “esquecimento” ou a “ocultação” a que parecem votados. São justamente estas massas esquecidas pelos cultores de “emojis” que estão, em todo o mundo ocidental, a votar nas forças populistas e extremistas – na Áustria, na França, na Grécia, na Holanda, na Espanha, na Polónia – e a alimentar o fenómeno norte-americano que dá pelo nome de Donald Trump.

5. Num certo sentido, o Brexit representa menos um fenómeno britânico, inerente a toda uma história e tradição de “autocontemplação” nacional e de afirmação orgulhosa da singularidade, e espelha, muito mais expressivamente, um fenómeno comum à civilização ocidental. E, por isso, não deve ser visto apenas na equação entrada ou saída da União, “soberanismo” ou “europeísmo”, pretensa tecnocracia ou “devolução democrática”. Tem de ser visto como o enfrentamento de duas placas tectónicas “sócio-político-culturais”. Não tenho dúvidas de que o melhor caminho é o do aprofundamento da internacionalização e do cosmopolitismo e que a demografia – a quem já alguém chamou a única “ciência social exacta” – e a tecnologia acabarão por se impor. Mas estou bem ciente de que esse caminho não pode ser feito à custa da marginalização e do apagamento de ordens sociais inteiras que, em grande medida, foram pura e simplesmente esquecidas, atiradas para o depósito de um qualquer museu antropológico.

As instituições europeias, os governos nacionais e os partidos políticos precisam urgentemente de “apreender” este outro lado do "Brexit". Não há democracia nem humanismo que resista ao olvido de milhões de seres humanos, cheios de razões e com uma boa parte da razão.

Sugerir correcção
Ler 8 comentários