Qualquer um de nós pode ser vítima de escravatura

A oferta de trabalho numa região longínqua depois de meses sem trabalho pode revelar-se, afinal, uma prisão. É o que diz o especialista Monti Datta, um dos autores do primeiro Índice Global da Escravatura. Em entrevista à Revista 2, comenta o caso de “escravatura moderna” das três mulheres em Londres

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Os detalhes sobre a investigação têm sido escassos, e divulgados aos poucos. Imagens dos envolvidos começaram a circular esta semana – o alegado líder é um homem de 73 anos, nascido na Índia, e de extrema-esquerda, que será apoiado pela mulher de 67 anos, da Tanzânia. Há suspeitas de que as mulheres tenham ficado amarradas com o que a polícia chamou de “algemas invisíveis”, sujeitas a “um controlo emocional extremo” e fazendo parte de um culto maoista que usava a violência e lavagem ao cérebro para as manter presas. O que se passava exactamente naquela casa no bairro de Lambeth, no sul de Londres, não se sabe.

Há uns anos, situações com contornos semelhantes seriam referidas de outra forma, como raptos – por exemplo, a história de Natascha Kampusch, a austríaca que foi mantida em cativeiro durante mais de oito anos por Wolfgang Priklopil e que escapou em 2006. Nem é preciso recuar tanto: ainda esta quinta-feira foi usada a expressão “manter em cativeiro” para falar do casal no Arizona, Estados Unidos, que terá aprisionado três irmãs.  

As palavras usadas para falar da situação pela qual terão passado as três mulheres em Londres têm sido outras: escravatura moderna. No domingo, a ministra da Administração Interna britânica, Theresa May, veio afirmar em público que combater a escravatura ia ser a sua prioridade “pessoal”, até porque este não seria o único caso de escravidão em Londres. Um projecto de lei contra a escravatura moderna está prestes a sair no Reino Unido, o primeiro do género na Europa, alegou, e irá aumentar a pena máxima nos crimes de tráfico para “garantir que os piores criminosos terão pena de prisão perpétua”, criando ainda a figura de comissário contra a escravatura. Várias organizações não-governamentais e think tanks têm, aliás, alertado para o problema (como a Unseen ou o Centre For Social Justice).

Porque é que estamos perante um caso de escravatura moderna, no caso das três mulheres Londres, então? “Se definirmos escravatura moderna como uma situação em que alguém está cativo sob vigilância ou sob ameaça de vigilância e de onde essa pessoa não pode fugir, ou em que essa pessoa está a fazer menos dinheiro do que aquele que precisa para subsistir, isso encaixa na definição de escravatura moderna e parece aplicar-se ao caso destas três mulheres em Londres, apesar de este ser um caso pouco comum”, diz em entrevista à Revista 2 Monti Datta, um dos autores do primeiro Índice Global de escravatura 2013, publicado pela Walk Free Foundation (organização que se dedica à erradicação da escravatura).

Quando em Outubro foi divulgado, o Índice que media 162 países revelou números chocantes: estimava em quase 30 milhões o número de escravos modernos que existiam no mundo. No ranking, o país com a maior prevalência de escravatura é a Mauritânia (representa entre 3,8 e 4,2% da população), mas em termos brutos é a Índia que ocupa o primeiro lugar (com entre 13,3 e 14,7 milhões). Só a Índia, China, Paquistão, Nigéria, Etiópia, Rússia, Tailândia, Congo, Birmânia e Bangladesh, juntos, representam 76% dos quase 30 milhões de escravos estimados. Danny Smith, autor de um livro sobre o tema, Slavery Now and Then, escrevia recentemente no Guardian que, segundo alguns cálculos, este número era superior ao tráfico de escravos deslocados de África para as Américas durante quatro séculos (calculados em 12,5 milhões). “A globalização viu a escravatura moderna crescer rapidamente. Hoje, os traficantes têm mais facilidade do que alguma vez tiveram em fazer circular o seu ‘produto’ pelo mundo”, disse.   

Escravatura moderna, uma definição não consensual

Falar de um caso de escravatura moderna em plena Europa ocidental, onde existem dos níveis mais baixos de risco de população escravizada, segundo o Índice, foi inesperado e chocante para muitos, comenta-nos Monti Datta. “Quando a maioria das pessoas pensa em escravatura não pensa em Londres, mas em Bangkok ou Deli”. Afinal, o ranking que ajudou a elaborar atribui à Europa apenas cerca de 1,8% do total de escravos estimados, um número baixo comparado com outras zonas geográficas como a Ásia, com mais de 72%.

Mas para ele não foi totalmente uma novidade. Porque, por outro lado, como escreviam os autores no relatório, o que os números revelam também de surpreendente é que alguns países da Europa ocidental não usem mais meios para erradicar a escravatura uma vez que em muitos deles poderia nem sequer existir (em Portugal calcula-se que existam entre 1300 e 1400 escravos). Países como o Reino Unido têm uma estimativa de 4,200 a 4,600 pessoas em situações de escravatura.  

À luz dos dados que o índice identifica – ou que tenta revelar, porque, como afirmam, a estimativas dos “números negros” de qualquer crime são difíceis, e ainda mais quando se trata de um crime cuja natureza é a indeterminação temporal – o caso em Londres é “pouco normal”. Aconteceu num país ocidental, rico, próspero, “onde ninguém imagina que possa acontecer”, as mulheres estavam numa casa no centro da cidade, e isto são características que “não encaixam com a maioria das dinâmicas da escravatura moderna”, continua Datta. “Quando se fala de exemplos de escravatura moderna pensamos em tráfico para fins de exploração sexual, trabalho forçado, pensamos em fábricas de tijolos na Índia e no Nepal… Este exemplo destaca-se por ser único, mas não é menos trágico do que outros exemplos de escravatura que serão mais prevalecentes hoje”.

Entre 2006, o ano em que Natascha Kampusch conseguiu escapar, e 2013, algo mudou para que a linguagem usada também tenha mudado. Datta, especialista no tema e também professor Universidade de Richmond, nos Estados Unidos, considera que, nos últimos 10 anos cresceu a tomada de consciência sobre o problema da escravatura moderna - nos media, mas também nos governos de diversos países.

Longe vão os tempos em que, nos anos 1990, Kevin Bales, co-fundador da organização Free the Slaves, também autor do Índice e de vários livros sobre escravatura moderna, fez uma pesquisa sobre o que tinha sido escrito sobre escravatura, encontrou 3 mil entradas mas apenas duas tratavam do problema na actualidade. “Agora há um debate entre pessoas que definem leis, políticos, autores de políticas públicas, celebridades de Hollywood, media, pessoas que estão familiarizadas com o conceito de escravatura moderna”, comenta Monti Datta. O que acontece, especifica, é que a definição irá mudar consoante a função que desempenha quem a define: de uma perspectiva legal será uma coisa, da de um assistente social será outra, e da de quem trabalha numa organização não-governamental será outra ainda. “O que se passa agora em Londres é que estes actores diferentes estão a ter um debate sobre o mesmo assunto e tentam aplicar o mesmo vocabulário a algo que todos sabem que está mal. A [palavra] escravatura capta a gravidade emocional de algo que é horrível e mostra quão grave é esta injustiça. Há 10 anos a maioria das pessoas não tinha a noção de que existia escravatura moderna e nem sequer tinha esse vocabulário.”

Já não se passa longe, mas aqui ao lado

Mas como se faz a distinção entre escravatura moderna, tráfico humano, exploração sexual e laboral? “Da minha perspectiva académica a definição de escravatura é muito simples: se alguém é preso sob violência ou ameaça de violência, não consegue escapar, e consegue menos dinheiro do que aquele de que precisa para viver, isso é escravatura. Mas se falar com outra pessoa, como um advogado, pode ter uma perspectiva distinta. Se for a uma conferência sobre este tema as pessoas passam a primeira hora a debater a definição de escravatura.”

Monti Datta dá outro exemplo, o do casamento forçado: “Pensemos numa mulher jovem, casada legalmente, mas em que esse casamento não foi a sua escolha. Além disso, o marido obriga-a a ter relações sexuais contra a sua vontade e ela até trabalha em casa todos os dias, sem ser paga. Isso é ou não um exemplo de escravatura? Para mim é. Outros não concordariam.”

Em relação a trabalhos forçados passa-se o mesmo: alicia-se alguém a ir trabalhar para um país estrangeiro, promete-se que se paga um valor, mas o trabalhador chega lá e acaba por ficar “em dívida” para com o empregador porque este lhe comprou a viagem e o que lhe paga não chega, afinal, para o bilhete de regresso. Ou, então, pense-se numa mulher que é contratada na Tailândia para ir trabalhar num bar no Japão, chega lá e tem que desempenhar um série de tarefas que não estavam previstas. Nos dois casos, as leis dos respectivos países até podem não considerar que se está perante uma situação de escravatura. Monti tem outra opinião: “Se alguém nessa situação não está em condições de se ir embora (porque não tem dinheiro para a viagem) isso é, para mim, escravatura moderna.”

A polémica com a definição de escravatura não se trata apenas de uma questão de linguagem, é importante em termos legais. Datta imagina que existe muita gente sem certezas sobre como definir o caso de Londres – tráfico, escravatura, servidão doméstica, exploração laboral e sexual? – até porque não se sabem exactamente os contornos do caso. Mas a questão da definição é importante, defende, porque se trata de encontrar a melhor forma de processar os responsáveis, já que as penas variam consoante o tipo de crime em que são enquadrados. 

Voltando à Europa ocidental, que tipo de escravatura existe? “A resposta fácil é que ainda há bastante escravatura sexual na Europa hoje. Basicamente, depois do colapso da União Soviética, o tumulto político dos antigos estados soviéticos criou incentivos para o crime organizado e para mulheres pobres se tornarem vulneráveis ao crime organizado. Isso levou ao tráfico da Europa de Leste para a Europa ocidental que persiste até agora. Há uma grande procura de escravos sexuais em todas as grandes cidades da Europa ocidental e muitas dessas mulheres são da Europa de Leste. Portanto há esse efeito, além de outras formas de escravatura como as que se encontram em Londres no caso daquelas três mulheres. Mas hoje a situação de escravatura moderna na Europa seja mais do que o tráfico para exploração sexual.”

Pensamos em casos como o de três trabalhadores portugueses que foram para as vinhas no Sul de França, alegadamente ao engano, e que, com a ajuda do sindicato de trabalhadores da zona de Narbonne, acusaram recentemente o patrão de “escravatura moderna”. Estará este tipo de escravatura a aumentar com a crise? Monti Datta não tem dados, mas diz: “A nossa suspeita é que sempre que existe uma situação económica difícil, em que as pessoas estão desesperadas por um emprego, vão voluntariar-se para trabalhos mais arriscados e alguns desses empregos são fraudes. Haverá pessoas a atravessar fronteiras e a colocarem-se numa situação em que estão a trabalhar na construção, na agricultura, ou no trabalho forçado sob condições desumanas. A tragédia desta questão é que qualquer um de nós, se estiver nas condições económicas erradas, pode ser susceptível de aceitar trabalhos fraudulentos que levam à escravatura. Já não é algo que se passa longe, é algo que se passa em Londres. Isso é muito assustador.”   

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