Projecto europeu versus valores europeus?

Talvez os piores europeus sejam aqueles que falam em “europeísmo” em cada minuto enquanto destroem os valores europeus.

Quando o embrião de uma “ideia europeia” nasceu no pós-guerra, 60 milhões de seres humanos tinham perdido as vidas numa tentativa de integração dos povos europeus sob uma visão única, unificada e impositiva. Após esse trauma, o ideal de uma associação pacífica de europeus definiu-se em torno de valores civilizacionais como a Liberdade, o Primado dos Cidadãos, a Tolerância. E a Democracia. Mas hoje alguns apresentam-se como “defensores da Europa” de um modo que a desfigura.

O “projecto europeu” não é um “valor”. É uma visão, uma opção. Existem múltiplas opções, todas legítimas. Federalismo, confederalismo, mercado comum, geometrias variáveis de envolvimento, entre outras. As opções devem ser pensadas. Decididas pelos cidadãos porque eles são a Democracia. Os valores europeus não podem ser despedaçados, sob pena de o “projecto europeu” se transfigurar num perigoso objectivo sem alma nem legitimidade, algo que poderia ser monstruoso e que nada, mas nada mesmo, tem que ver com os ideais que nos inspiraram.

Não sou eurocéptico nem eurofanático. Não sou de direita e recuso os (dois) populismos que fingem ser opostos. Todos os dias estou em contacto com pessoas de todas as regiões do mundo, ideologias ou religiões. Os meus amigos estão espalhados pelo mundo, inseridos em culturas e visões distintas. Não sou xenófobo, pelo contrário. E todos os dias, num ambiente interdependente em que se diluem distâncias ou fronteiras, lido com fórmulas de interagir com as consequências do processo sistémico que conhecemos como globalização (que a maioria dos políticos europeus cita mas não compreende). Defendo uma Europa de convergência natural, não forçada. Hoje, ser-se “bom europeu” impõe que se aponte o perigoso ataque dirigido aos valores europeus, exercido por muitos daqueles que se ostentam como “europeístas” puros.

Dos valores europeus pouco resta neste “processo”. Como reconheceu um dos poucos grandes estadistas da Europa, o europeísta Giscard d’Estaing, às escondidas dos cidadãos está-se a construir, por passos sucessivos dissimulados, algo que se esconde aos cidadãos. É uma Europa federal, um superestado europeu, e para tal se presume que, passo a passo, se desmontem gradualmente a soberania, a identidade e, em última fase, a independência dos países, a transformar lentamente em regiões de um poder quase imperial centrado em Bruxelas. Na verdade esta opção, entre outras, é também legítima. Para qualquer verdadeiro democrata, tolerante e defensor da liberdade, é legítimo ser-se euro-entusiasta, eurocéptico ou ter outras visões. O que é intolerável e perigoso é que se tenha imposto um modelo de pensamento único, que é esse, que tem que ser esse, que não tem discussão. O que é grave é que não se admita que os cidadãos pensem ou (supremo pecado) que decidam sobre o seu futuro, que se combata aquilo que se designa por Democracia, um dos pilares inspiracionais da Europa.

Os valores europeus são desprezados. Liberdade? Não é permitida a liberdade de divergência ou mesmo dúvidas sobre a opção federalizante e quem o faça é apelidado de eurocéptico como se se tratasse de uma classificação criminosa, como se pensar ideias alternativas fosse agora uma heresia, um crime. Um político europeu chamou-lhe “vírus”. Aqui poderá estar uma embrionária “Inquisição”. É assustador. Tolerância? Outro valor ignorado quando não se aceita, antes se combate ferozmente, a imaginação criativa sobre o futuro europeu, se não enquadrável no modelo conceptual imposto. Democracia, um supremo valor do “ideal europeu”? Já não se fala na “Europa dos Cidadãos”, algo que aterroriza os defensores da visão indiscutível. Muitos não sabem conviver com a noção de que os cidadãos são a única base totalmente genuína da Democracia.

Desde que o Reino Unido teve a coragem democrática de deixar os cidadãos decidir o seu próprio futuro, o que se vê nas declarações políticas europeias e nos “convenientes” comentadores é o “horror” perante a possibilidade de outros países conduzirem essa criminosa actividade que consiste em deixar os cidadãos decidir, na pureza da Democracia. Nesta dinâmica impositiva a Democracia é vista como um perigo. A vontade dos Cidadãos é tratada como uma ameaça subversiva. Políticos europeus agressivamente consideram David Cameron “irresponsável” por ter consultado os seus cidadãos. É esta a Europa dos Cidadãos e dos Valores Europeus? Ou o verdadeiro Projecto Europeu foi sequestrado por políticos que destilam aversão à liberdade, intolerância perante outras visões, antidemocrático ódio pela ideia de os cidadãos decidirem? Instalou-se o medo de comentar, de ter ideias, de questionar, de criar. Os europeus estão a perder dignidade.

Talvez, afinal, os piores europeus sejam aqueles que falam em “europeísmo” em cada minuto enquanto destroem os valores europeus. E, a avaliar pela ferocidade com que desejam punir o Reino Unido como exemplo dissuasor para outros países com tentações democráticas, esta perversão dos valores europeus irá recriar o ódio na Europa. E, no futuro, talvez o conflito.

Gestor

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