Pistas para a trapalhada espanhola

Os líderes políticos apostam em culpabilizar-se mutuamente pela falta de um acordo. Os espanhóis exigem pactos mas rejeitam todas as soluções maioritárias.

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De todos os europeus, são os espanhóis os mais perplexos com a situação espanhola. A imprensa internacional emite opiniões genéricas sobre o prolongado impasse político. Olhemos antes o que os nossos vizinhos pensam (ou dizem). Segundo as sondagens, mais de 80% dos espanhóis opõem-se a eleições antecipadas mas divergem no resto. A incapacidade de os quatro maiores partidos chegarem a acordo faz baixar a sua valoração entre os que neles votaram a 20 de Dezembro. As sondagens indicam que o novo quadro “tetrapartidário” persistirá e que se não vislumbram tentações de regresso ao bipartidarismo.

A melhor maneira de abordar a perplexidade espanhola é saber o que os cidadãos pensam das várias opções de alianças susceptíveis de reunir maiorias. Recorremos a um recente inquérito conduzido pelo politólogo Kiko Llaneras. Os cidadãos exigem pactos mas não aprovam nenhum. Um acordo encabeçado pelo PP com apoio de socialistas e o Cidadãos recolhe 22,4% de aprovações mas a rejeição de 58,9% dos inquiridos. Idêntico pacto, mas encabeçado pelo PSOE, apenas reúne 7% de aprovações e a rejeição de 62,8%. Um acordo entre o PSOE, Cidadãos e Podemos é defendido por 12,1% e rejeitado por 62%. Enfim, a “frente de esquerda” (PSOE, Podemos, Esquerda Unida e nacionalistas periféricos — bascos, catalães e outros) seria apoiada por 16,2% e rejeitada por 61,4%. Só 19,6% querem eleições.

Frisa outro politólogo, Lluís Orriols, que os resultados de Dezembro criaram um quadro em que é extremamente difícil “encaixar as peças”. Um governo das esquerdas só seria viável com o apoio de forças nacionalistas, algumas delas com o mandato de uma ruptura com Espanha. Um “governo mestiço”, seja uma “grande coligação” (PP-PSOE) ou o triângulo PSOE-Cidadãos-Podemos esbarram na absoluta incompatibilidade entre socialistas e populares ou entre o Podemos e o Cidadãos.

Não é fácil ser espanhol. Ou talvez os espanhóis, que romperam com o bipartidarismo, não se tenham ainda libertado dos antigos quadros mentais e só verbalmente tenham assumido a “cultura de pactos” que nas sondagens exigem aos políticos.

Por trás da cena

“Imaginemos um jogo de decisão racional a três” (caso da proposta Sánchez), sugere o politólogo Fernando Vallespín. Há duas opções: pactuar com os outros dois ou ir para eleições. Pactuar impõe concessões, que podem ameaçar a sua estabilidade interna ou colocar os três em desvantagem no caso de fracasso. “Neste quadro, qual seria a decisão mais favorável para os três? Parece óbvio, o incentivo para os três será fingir que pactuam e ir depois a eleições.” A possibilidade de eleições faz encarar os pactos como um jogo de soma zero, em que o que uns ganham é o que os outros perdem, e leva os actores a preferir “minimizar as perdas”. Não é um “jogo cooperativo” em que procurariam “maximizar um mínimo de ganhos”.

Neste caso, para se salvarem eleitoralmente, “têm de saber vender com eficácia [a ideia] de que cada um deles não é o culpado de não se ter chegado a um pacto”. Culpar o adversário está no centro da táctica negocial. Sem perceber isto as negociações desta semana são ininteligíveis.

Este ponto liga-se a outro: a luta pela hegemonia nas esquerdas, em que o PSOE e o Podemos se assumem como projectos antagónicos. O conflito vai mais longe do que a concorrência política. Iglesias nunca escondeu que o seu objectivo é o sorpasso do PSOE, a sua ultrapassagem como principal partido da esquerda para construir uma nova área política e monopolizar a oposição ao PP.

Uma polémica recente entre dois politólogos, Ignacio Sánchez-Cuenca e Luis Arroyo, ilustra a confusão estratégica. O primeiro, defensor de uma aliança PSOE-Podemos, acusa os dois partidos de estarem a agir contra os seus próprios interesses. Escreve: “Se o PSOE governasse com o Cidadãos, graças à abstenção do Podemos ou do PP, o Podemos transformar-se-ia no grande partido de oposição em Espanha. (...) Poderia dedicar todo o seu tempo a defender que o PSOE é o mesmo que o PP ou que o PSOE diz uma coisa na oposição e outra no Governo.” Governando com o Podemos, “o PSOE recuperaria parte da credibilidade perdida e poderia incorporar a esquerda mais radical na responsabilidade de governar.”

Responde Ayuso que nada indica que Iglesias queira governar com o PSOE. “O seu roteiro passa por ser o segundo em votos e relegar o PSOE para terceiro lugar, forçando os socialistas à salomónica decisão de apoiarem Rajoy ou Iglesias, esperando que tal abra uma luta letal e fratricida entre os socialistas, (...) num choque brutal de estratégias pela hegemonia da esquerda.”

Na sua réplica, conclui Sánchez-Cuenca: “Se o PSOE governar com o Podemos ser-lhe-á mais fácil recuperar os votos de esquerda e neutralizar muitas das vantagens que neste momento o Podemos tem em relação ao PSOE.” Faria com “que o novo partido perdesse a virgindade política, ‘manchando-se’ nas tarefas de governo.”

A bofetada de Iglesias

Na sexta-feira, após as negociações da véspera, Iglesias anunciou subitamente um referendo interno sobre o pacto de governo PSOE-Cidadãos. É uma bofetada em Sánchez, a quem deixa sem alternativas. “Tudo foi uma artimanha”, denunciam os socialistas. Ontem, o PP propôs conversações a Sánchez e Rivera para formar um governo. Poderia o PSOE entrar agora num governo presidido por Rajoy?

Será uma campanha eleitoral mórbida. “Resta a repartição das culpas, a única mensagem eleitoral dos partidos. Não serão os programas ou as ideologias mas a responsabilidade pela falta de acordo e a repetição de eleições aquilo que os partidos submeterão aos espanhóis no 26 de Junho”, lamenta-se no El País o jornalista Fernando Garea.

As sondagens indicam que não haverá grandes mudanças na escolha dos eleitores. Mas, a mais de cem dias do voto, pode haver muitos factores de perturbação. O descontentamento com a situação política atingiu novo recorde: 94%. Lluís Orriols admite que a repetição de eleições suscite um aumento da abstenção, o que pode ter efeitos sensíveis na repartição dos deputados. O PSOE poderia ser o mais prejudicado. Segundo o Centro de Investigaciones Sociológicas, os seus eleitores são os menos motivados. Em compensação, o PP tem o eleitorado mais fidelizado, o que se poderá traduzir, mais do que em votos, na conquista de mais mandatos. O Cidadãos não tem ainda um eleitorado consolidado.

Se o eleitorado do Podemos aparece mais motivado do que o socialista, nem tudo são rosas. As sondagens dão-lhe a imagem de partido dividido, heteróclito e agressivo. Nas negociações, deu ainda outra imagem: o “partido do não”. Note-se que 18% dos que nele votaram em Dezembro consideram-no o principal culpado por não haver governo. Tem no entanto uma carta de reserva: se lhe for possível uma aliança eleitoral com a Esquerda Unida, poderá ultrapassar os socialistas em número de deputados. O que teria consequências devastadoras para o PSOE, que nunca teve um verdadeiro concorrente à esquerda.

É aconselhável esperar 107 dias para avaliar os efeitos da trapalhada espanhola.     

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