Parem de dizer mal de Hillary Clinton

Acusam-na de ser demasiado reservada e demasiado ambiciosa. A questão fundamental não é essa.

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1. E, já agora, parem de tentar encontrar sinais de que Donald Trump pode não ser assim tão mau. Que talvez não vá destruir totalmente o "Obamacare", que deu acesso à saúde de qualidade a mais de 20 milhões de americanos. Ou talvez não rasgue os tratados comerciais todos ao mesmo tempo. Percebe-se o desespero. Não é que Trump não possa emendar a mão aqui ou ali. Mas isso não é o fundamental. O fundamental, aquilo que verdadeiramente assusta, é o fim do Ocidente, não apenas como um conceito geopolítico, mas como o espaço unido pela democracia liberal. Não apenas como uma aliança para garantir a segurança dos seus membros ou influenciar a seu favor o curso dos acontecimentos, mas como uma aliança de democracias que partilham os mesmos valores de liberdade, respeito pela dignidade humana, tolerância e abertura aos outros. Não basta falarmos das consequências do corte radical de Trump com o consenso em torno do papel dos EUA no mundo. É mais fundo. É mais perigoso. Por isso, Ann Applebaum, autora da obra magistral Goulag, a History (2004), pergunta se a eleição de Trump não significa afinal o fim do mundo livre. Paremos para reflectir naquilo que ficou por reflectir durante a tempestade eleitoral. Trump não fala em Ocidente. Trump não fala da democracia americana. Fala da América e de uma América racista, intolerante para com as minorias e os imigrantes, que despreza as mulheres, que diz que Obama fundou o Estado Islâmico, que a Estónia é um subúrbio de SãoPetersburgo. Que vê nos “homens fortes” do mundo, de Putin a Erdogan passando por Xi, os parceiros necessários para pôr ordem… onde. Numa palavra, indiferente ao que se passa no mundo, da tragédia de Alepo à independência da Estónia, passando pela chantagem nuclear da Coreia do Norte. Percebe-se que seja tão assustador que nos induza a pensar que não pode ser possível. Pelo menos não totalmente. É difícil de imaginar que a grande democracia americana, que sempre nos fascinou, com as suas virtudes e os seus defeitos e a sua eterna capacidade de regeneração, possa ser posta em causa desta maneira tão inesperada. É doloroso aceitar que acabou abruptamente o tempo em que, como dizia Pierre Hassner, “todos os homens de boa vontade em todo o mundo” sentiam como sua a eleição de Obama. Bush não tem nada que ver com Trump, é conveniente esclarecer. É por isso que o que aconteceu nos angustia. Tememos o fim daquilo com que sempre contámos e em que sempre acreditámos.

2. Parem de dizer mal de Hillary Clinton. Ou de fazer dela o “bode expiatório” de todos os nossos erros. A face das elites corruptas e alienadas? Pode ser. Mas esse é o discurso no qual o populismo ignaro de Trump nos quis fazer acreditar. Hillary não é apenas o produto da cultura de Washington. Hillary é uma mulher corajosa, inteligente, que não desistiu do essencial de um programa progressista e aberto, nem abdicou da responsabilidade da América no mundo. Pode ter ignorado algumas boas práticas para ganhar dinheiro (a vida política americana está demasiado dependente do dinheiro), pode ter utilizado a sua conta pessoal de email para outros fins que não fossem saber da saúde dos netos. Mas convenhamos que os seus emails (nos quais até agora o FBI ainda não encontrou indícios de crime) foram escritos na altura em que alguns “idiotas úteis” como Assange ou Snowden eram aclamados como os reis da transparência universal, contra os “segredos” das nossas pouco virtuosas democracias. Acusam-na de ser demasiado reservada e demasiado ambiciosa. A questão fundamental não é essa. “Não foi ela que falhou perante nós”, escreve Sarah Churchwell no Guardian. “Nós é que falhámos perante ela.” “Nós”, aqui, quer dizer as mulheres. E mesmo que não creia que haja um voto exclusivamente feminino (nem isso seria possível ou saudável), o que se disse dela não se diria de um homem. Quando quase desmaiou nas comemorações do 11 de Setembro, em Nova Iorque, a ideia de que estava doente foi vista como a demonstração da sua fraqueza. Se fosse um homem, a versão provável seria: “Coitado, anda tão cansado que está a precisar de uma folga.” Ou qualquer coisa do género. A reserva seria bem aceite num homem, talvez como sinal de seriedade. Nela era um defeito. A eleição de uma mulher pode não ofender ninguém nas grandes cidades cosmopolitas americanas. Mas não no Midwest agrícola e conservador e nos homens brancos pouco instruídos que elegeram Trump não é aceitável. O retrato desfocado que quiseram fazer dela transformou-se num “pensamento único”, reproduzido acriticamente por toda e qualquer mente bem-pensante. Do lá de lá e de cá Atlântico. Era mais simples dizer: ela é preparadíssima, mas fez aquelas conferências em Wall Street demasiado bem pagas. Todos fazem. Blair, Clinton, Kohl, Barroso, Gonzalez. Já a riqueza amealhada através de negócios obscuros do dono da Trump Tower não parece perturbar ninguém. Desde a habilidade para fugir aos impostos até aos empréstimos aparentemente “malparados” que terá contraído com o Deutsche Bank (esse mesmo) e que agora pesam na multa que o gigante alemão terá de pagar em Washington. E nem vale a pena perdermos tempo a pensar que talvez outro candidato tivesse vencido Trump. Que outro? Sanders? Ninguém tem a certeza. As eleições em democracia não são exercícios quimicamente puros. O voto é exercido por cidadãos livres cujas motivações não podemos antecipar e nas circunstâncias do momento. Num dia pode ser o FBI, no outro outra coisa qualquer. Convém portanto não abusar dos “ses”.

3. Hoje, as democracias representativas estão a ser minadas pelas redes sociais que destroem qualquer ideia de racionalidade. São elas que marcam o ritmo, definem os assuntos, condicionam os meios de comunicação tradicionais. Serviram, dizem os seus defensores, para criar o movimento da Praça Tahiri, ou a “explosão” eleitoral do Podemos. É verdade. Mas os jovens egípcios já devem estar todos na cadeia e o general Al-Sissi é pior do que Mubarak. Quanto ao Podemos, para além do efeito de destruição do PSOE, é hoje liderado por uma “elite” tão ou mais oportunista do que a que lidera os socialistas. O populismo não tem de ser apenas um nacionalismo sem máscara como na França, na Alemanha ou na Holanda. Pode ser uma doença fatal que esconde os seus sintomas até que seja tarde demais para combatê-la. Hoje, a sua versão mais perigosa é aquela que proclama a “democracia directa” como a melhor democracia, quando historicamente foi sempre uma tentativa para acabar com ela. É aquela que elege a “transparência” como a bondade absoluta, mesmo quando não passa de uma forma de voyeurismo mais ou menos repelente mas sempre atraente para acicatar o ódio ou a raiva. Temos assistido diariamente à sua exibição a propósito da Caixa. O controlo democrático fica garantido pela entrega das declarações de património ao Tribunal Constitucional apenas acessíveis ao Ministério Público ou à Autoridade Tributária. Mas isso troca as voltas aos nossos arautos da transparência. O que lhes interessa é poder publicá-las nas capas dos jornais e nas aberturas dos telejornais. É este o Estado de direito que defendem.

Financial Times dizia há dias que a América pode sobreviver a Trump, o Ocidente é que talvez não. Não vale a pena rendermo-nos ao catastrofismo. Mas vale a pena sabermos por que é que vamos ter de lutar. Não é este o mundo que queremos para os nossos filhos.

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