Os dias de todos os perigos

O referendo não se realizará. Mas o “processo” não acaba aqui. E as derrotas não são necessariamente negativas para os independentistas

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1. O Estado espanhol — governo e poder judicial — estava (e estará) sob um dilema: impedir a realização de um referendo ilegal sob risco de alienar uma faixa muito larga da opinião pública catalã. Ganhar a “batalha do referendo” é uma coisa, outra é ganhar “a batalha ideológica e afectiva”. Tudo anuncia um conflito longo, dentro da maior crise política da Espanha democrática. 

O espaço de manobra do Governo de Madrid foi-se estreitando. Ao mesmo tempo, os independentistas apostavam na lógica de forçar a intervenção estatal de forma a suscitar indignação, mobilizar e romper o seu isolamento internacional. Tudo fizeram para forçar a resposta do Estado. A última provocação foi a aprovação expeditiva e irregular (calando a oposição) da lei do referendo, no passado dia 6, a que se seguiu a lei da ruptura com Espanha. É habitual os nacionalismos porem a causa da independência acima dos outros valores, como a legalidade ou as regras da democracia.

2. A situação catalã tornou-se insustentável. “É óbvio que num Estado não podem coexistir — a não ser por poucos dias e com grande dificuldade — duas legalidades distintas”, explica Joan Tapia, antigo director do La Vanguardia. “Ou o independentismo impõe a sua, porque o Estado cede antes ou depois do referendo (se houver urnas, uma grande afluência e uma grande vitória do sim), ou o Estado se impõe. E neste choque entre a legalidade insurreccional e a constitucional não vai haver grandes escrúpulos. E, uma vez passado o Rubicão (as declarações de ruptura do parlamento catalão), é difícil a Puigdemont voltar atrás.”

3. A resposta do Estado começou a ser dada há dias quando o Ministério das Finanças interveio nas finanças da Catalunha. Seguiram-se agora as apreensões de urnas e boletins de voto e a detenção de 14 altos funcionários que constituíam o “núcleo duro” da organização do referendo. 
A imprensa constitucionalista aprovou Rajoy, tal como o fizeram o PSOE e o Ciudadanos. “Restaurar a ordem constitucional implica evitar o referendo secessionista”, lê-se no editorial de El País. “O desafio secessionista ameaça a democracia, a liberdade e a convivência.” O El País nunca escondeu a sua radical hostilidade ao independentismo, defendendo como alternativa uma revisão constitucional para criar um estado federal.

Ao contrário, no La Vanguardia, o subdirector Enric Juliana alerta para o risco da intervenção ser entendida como uma “humilhação das instituições catalãs”. “A situação criada na Catalunha é grave. Muito grave. Não só pelo que pode acontecer nos próximos dias. Creio que nos centros de poder espanhóis se subvaloriza a profundidade do protesto e da desafecção.” 

Conclui em tom de alarme: “Está a abrir-se o ciclo histórico da separação da Catalunha de Espanha, com o insensato aplauso das tertúlias de Madrid. (...) Em Barcelona, o risco é o aventureirismo.”

“Se não há urnas, há a rua”, diz-se em Barcelona. A tensão é muito alta e multiplicam-se os apelos à mobilização permanente até 1 de Outubro. “Nós somos a locomotiva. O choque de comboios tinha de chegar e por fim chegou. Agora não há nada que o páre”, proclamava ontem um delegado da Assembleia Nacional Catalã (ANC), que organiza as mobilizações da Diada. 

Os independentistas perderam a batalha do reconhecimento no plano internacional. A secessão unilateral é um tabú constitucional em toda a Europa. Esperam agora ganhar a batalha das imagens — polícias contra manifestantes — nas televisões mundiais. 

4. O jornalista catalão Lluis Bassets, subdirector do El País, faz um balanço dos erros dos nacionalistas que “deram de bandeja” razões ao Governo central. “Calcularam mal as forças, sobretudo a força da legalidade democrática; romperam a unidade civil catalã e a própria sociedade catalã, pelo que a sua ruptura se tornou em boa medida um confronto entre metade dos catalães contra a outra metade; e lançaram-se finalmente, graças à CUP, nos braços dos movimentos anti-sistema.”

O referendo não se realizará. Mas o “processo” não acaba aqui. E as derrotas não são necessariamente negativas para os independentistas. Nacionalismos como o catalão cultivam com arte a vitimização. Registarão na memória social mais uma “ferida histórica”, que confirmará a razão de ser da sua causa.

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