Obrigado, Antoine Deltour

A perseguição aos guerrilheiros da informação continua.

Terminaram esta semana, no Luxemburgo, as audiências de julgamento de Antoine Deltour, Édouard Pérrin e Raphael Halet, estando anunciada para o próximo dia 29 de Junho a leitura da sentença. As acusações são diversas, desde o roubo de documentos à violação de segredo profissional e de segredos comerciais. Quem são estes alegados criminosos? O que fizeram para terem de se sentar no banco dos réus?

Pertencem ao restrito número de heróis do século XXI que, não olhando aos inevitáveis sacrifícios pessoais, decidem em determinado momento da vida que devem obedecer a um imperativo moral e dar a conhecer ao mundo - porque hoje vivemos no mundo e não em qualquer aldeia ou cidade - a informação confidencial a que tiveram acesso.

Já aqui falámos por mais de uma vez de Julian Assange e de Edward Snowden condenados a uma pesada pena de prisão numa embaixada em Londres e ao exílio em Moscovo. Antoine Deltour está também nesse pódio de guerrilheiros solitários que, não obedecendo a nenhuma ordem, não pertencendo a nenhuma seita, nem auferindo quaisquer vantagens económicas, enfrentam poderosos impérios pondo em risco a sua liberdade, se não a própria vida. Concretamente, Antoine Deltour está na origem da Luxleaks, uma imensa fuga de informação que nos permitiu ficar a saber da existência de escandalosos acordos celebrados entre a administração fiscal do Luxemburgo e numerosas empresas multinacionais que concederam a estas, durante muitos anos, o privilégio de pagar ao Grão-Ducado uma ínfima percentagem dos impostos que deveriam pagar como qualquer outra empresa. Cerca de 300 grandes empresas, tais como a Amazon ou a Fiat, abriram sucursais no Luxemburgo para poderem beneficiar desses acordos confidenciais mas... legais!

Antoine Deltour trabalhava na PwC (PricewaterhouseCoopers) e foi aí que deparou com uma pasta com acordos fiscais desse tipo que, de imediato, compreendeu serem uma profunda injustiça e até desonestidade não só em relação aos contribuintes em geral mas também em relação aos Estados onde essas empresas realizavam os lucros e que eram deslocalizados para o Luxemburgo para pagarem uma taxa irrisória sobre os mesmos. Saiu da empresa e levou consigo cópias informáticas de alguns milhares desses documentos que algum tempo depois entregou ao jornalista Édouard Pérrin que os veio a divulgar num canal francês de televisão conjuntamente com o ICIJ - o consórcio de jornalistas de investigação que recentemente divulgou os Panama Papers. Raphael Halet, que igualmente trabalhava na PwC, forneceu também matéria-prima do mesmo tipo ao jornalista.

A divulgação desta informação teve enormes repercussões e levou a que o Parlamento Europeu criasse uma comissão especial para investigar as práticas fiscais reveladas pela Luxleaks e a Comissão Europeia apresentasse um pacote de medidas a favor da transparência fiscal. O Parlamento Europeu atribuiu o Prémio do Cidadão Europeu 2015, um prémio que distingue os cidadãos que contribuíram para a cooperação europeia e para a promoção dos valores comuns, a Antoine Deltour. E, no entanto, está a ser julgado...

Está a ser julgado e provavelmente irá ser condenado, tal como os restantes réus, porque fizeram justiça pelas próprias mãos, permitindo o acesso de todos nós a informação de evidente interesse público, assim violando, à partida, a lei positiva: Antoine Deltour, por exemplo, assinara um compromisso de confidencialidade com a sua entidade patronal, a PwC e a verdade é que os acordos que divulgou – negociados pela PwC em representação das multinacionais – embora escandalosos, injustos e ofensivos, não eram ilegais.

No julgamento debateram-se, assim, duas perspectivas completamente diferentes do direito e da justiça. De um lado, os representantes da PwC e a acusação pública pedindo a condenação dos réus e procurando que os depoimentos das testemunhas se cingissem aos factos concretos. Copiou ou não copiou os documentos? Assinou ou não assinou um contrato de confidencialidade? Premeditou ou não a divulgação dos documentos? Do outro lado, a defesa dos réus defendendo a sua absolvição com diversas testemunhas ligadas ao Parlamento Europeu ou a ONGs, procurando demonstrar que a primitiva confidencialidade deveria ceder perante o interesse público na divulgação desses documentos. Para os advogados de defesa, o tribunal irá escrever uma página essencial para toda a Europa e para o direito europeu.

Dificilmente os réus serão absolvidos se bem que também não é nada provável serem condenados em penas de prisão efectivas. Muito provavelmente, o tribunal condenará os réus em multas ou penas suspensas porque absolvê-los seria subscrever uma lógica que certamente entende como subversiva.

Mas eles são, inequivocamente, para além de três pessoas comuns, três heróis desta insana guerrilha contra os poderes que, neste cada vez mais complexo mundo, nos esmigalham sem o sabermos.

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