O “umbiguismo” como tragédia política do Ocidente

A negociação do "Brexit" é uma prioridade europeia; mas é tão-só uma entre várias outras. É fundamental manter a cabeça fria e tocar a vida para a frente.

1. A vida tem as suas ironias. O voto em Trump foi um voto nacionalista. O voto pelo "Brexit" foi outro voto nacionalista. Supostamente esta opção nacionalista, muito actual e em linha com um retorno à pureza alquímica do Estado-nação, serviria para engrandecer os Estados respectivos e os feitos dos seus povos. E daí que as campanhas eleitorais tivessem feito ecoar os magnos desígnios de fazer a América grande outra vez e de restaurar a influência de um Reino Unido pós-imperial (pela voz de alguns, mesmo “retro-imperial”). A eterna busca da idade do ouro, dos tempos de uma soberania mitificada, guiou e guindou esta vaga de nacionalismo “anti-globalização”. É evidente que este regresso à nação e à alegada soberania perdida tem um escopo e esse escopo é relançar a grandeza de tais nações. Grandeza essa que não se traduz apenas no incremento do bem-estar e da qualidade de vida dos povos respectivos, mas que se consubstancia essencialmente na projecção do seu poder, da sua influência e do seu prestígio à escala internacional, à escala global. Regressar à nação e ao seu fechamento para a tornar maior, para a fazer mais forte, para a alcandorar ao estatuto de suma potência. Não se trata só de governar para dentro; trata-se de converter o estado, a nação e o povo em objecto de admiração, de respeito e até de temor de todos os restantes. Isso sim, é fazer da América a maior e é fazer dos britânicos os cobiçados lordes e senhores de outrora. Mas, convém não esquecer nem menosprezar, a vida tem as suas ironias.

 2. Desde que o "Brexit" começou a fazer o seu curso, lento e difícil, com enorme resistência e relutância da fabulosa máquina diplomática britânica, que o Reino Unido mergulhou numa agenda puramente interna. Basta olhar para a campanha eleitoral para ver que programas e promessas se haurem e esvaem no "Brexit". A vida política britânica está reduzida à negociação do divórcio com a União Europeia, sem tempo, sem disponibilidade e sem cabeça para mais nada. Quanto vai ter de pagar ou quanto vai recusar pagar? Fica com acesso ou sem acesso ao mercado único? Como vai organizar a circulação de migrantes? Vai diferenciar entre europeus e não europeus? Que estatuto vai dar aos cidadãos da União Europeia que já ali viviam e aos britânicos que vivem na União? Pelo meio das propostas folclóricas de James Corbyn, só há debate e pensamento para as questões sérias do divórcio. Não há nenhum projecto de futuro, não se vislumbra nenhuma visão, não se acende nenhuma ideia do que será o dia seguinte. Todas as energias se consomem nas negociações da saída, no cálculo das incertezas, no inventário dos instrumentos de pressão, no deve e haver dos trunfos e fraquezas. O Reino Unido reclina-se sobre o seu umbigo, torce-se e contorce-se em volta dele. Não há maneira de este nacionalismo e de esta pretensa recuperação de soberania fazer da Velha Albion uma nação mais forte, mais influente, mais determinante no panorama internacional ou global.

O risco desta obsessão britânica é de arrastar consigo toda a União Europeia para um “umbiguismo” paralelo. Em vez de cuidar do futuro e de tratar das feridas da zona euro, das brechas do espaço de liberdade, justiça e segurança e das perspectivas de uma verdadeira união de defesa, fica prisioneira de um alucinante e estafante processo de divórcio. É essa a tentação que tem de evitar. A negociação do "Brexit" é uma prioridade europeia; mas é tão-só uma entre várias outras. É fundamental manter a cabeça fria e tocar a vida para a frente, enquanto se vai negociando os termos do divórcio, que se quer amigável.

3. Donald Trump quer fazer a América grande ou, mais exactamente, a maior! Mas está irremediavelmente perdido no labirinto da sua errância. Toda a sua atenção e, já agora, da classe política norte-americana está absorvida pelos escândalos de Trump, pelas suas declarações contraditórias, pela sua tentativa de obstruir a justiça, pelas nomeações polémicas, pelas esquisitas ligações à Rússia, pela omnipresença da família. A administração americana está completamente consumida pela agenda das trapalhadas de Trump. A deriva nacionalista deu nisto: não se pensa na nação nem na sua projecção, fica-se mesmo pela sobrevivência política de um indivíduo e pelas desventuras da sua família e dos seus amigos. De tanto se querer fazer a América grande ou até enorme, acaba-se a olhar para o umbigo e a tratar de assuntos de nível comezinho e rasteiro. A Rússia agradece e bate palmas. A China até já parece uma campeã do comércio livre e justo, uma aspirante a defensora dos direitos humanos e uma empreendedora de projectos de verdadeiro impacto global (como a redescoberta da rota ferroviária da seda). Os Estados Unidos, com o seu programa nacionalista, desembocaram no mais pobre e descoraçoado “umbiguismo”. Trump e a sua administração não têm tempo nem disponibilidade para se ocuparem dos grandes desafios políticos e estratégicos; na verdade, e usando uma linguagem prosaica, muito ajustada ao visado, Trump já só pensa em “se safar”. É este o grande desígnio da bandeira nacionalista que decidiu erguer: “safar-se”.

4. A vida tem as suas ironias. As duas campanhas mais nacionalistas dos últimos anos – a do referendo britânico e a das presidenciais americanas – em nada serviram para reforçar o peso dessas duas nações e dos seus poderosos Estados. Bem pelo contrário, mergulharam-nos numa espécie de encapsulamento e ensimesmamento interno. Que fique a lição para aqueles que andam para aí tão satisfeitos, para não dizer ufanos, com o regresso do nacionalismo e o retorno à política doméstica. Dizem que, pelo menos, reforçaria a democracia. Olhando para a destruição do Partido Trabalhista e para a tragicomédia política em Washington, ainda não deu para perceber em que é que esta deriva “umbiguista” fortaleceu os respectivos modelos democráticos. A vida tem as suas ironias.    

SIM. Saída do Procedimento de Défice Excessivo. Eis um momento decisivo e justo para todos os portugueses. Merecem boa nota os governantes que de 2011 até agora perceberam a importância desta meta. 

NÃO. Classe política brasileira. Temer é talvez o caso mais grave, mas a corrupção é generalizada e não se vê como pode regenerar-se o sistema político. Uma tragédia política de proporções globais.  

Sugerir correcção
Ler 1 comentários