O segredo de justiça na Europa

A Grande Câmara do TEDH não valorizou devidamente a liberdade de expressão.

A questão tem, no nosso país, toda a actualidade: perante um conflito entre, de um lado, a liberdade de expressão e de informação e, do outro, o segredo de justiça e o direito à privacidade, qual deve prevalecer? Onde se estabelece a fronteira entre o que é lícito divulgar e o que já não o é? É sabido que não é possível estabelecer uma linha de fronteira abstracta e válida para todos os casos e que só perante o caso concreto é possível avaliar qual o direito que, em última linha, deve prevalecer ou qual o direito que mais deve recuar nesse confronto. Os critérios para desenhar essa linha de fronteira são muitos e entre eles, sobressai o interesse público do assunto em causa, nomeadamente se o visado é uma figura pública sobre a qual impendem deveres/direitos de especial escrutínio ou se é um mero cidadão anónimo que, por qualquer motivo, se torna objecto de notícia.

Certo é que uma proibição genérica e absoluta de informar/noticiar/comentar sobre processos em segredo de justiça ou que se debrucem sobre questões atinentes à vida privada seria intolerável numa sociedade democrática. Por outro lado, também dúvidas não há que de que, em determinadas situações, o segredo de justiça ou o direito ao respeito da vida privada devem prevalecer. Basta pensar no clássico caso de o juiz ordenar uma busca numa determinada residência: se a comunicação social divulgasse essa decisão antes da sua concretização, haveria uma alta probabilidade de a mesma se vir a revelar ineficaz.

No nosso país – um pouco como em muitos outros – as relações entre o segredo de justiça e a comunicação social são bastante instáveis e, até, caricatas como foi o caso do director de um jornal nortenho que se foi queixar pessoalmente à procuradoria-geral da República da violação de segredo de justiça.

Já tivemos um regime legal de segredo de justiça absolutista e que era desrespeitado sistematicamente e, actualmente, temos um regime mais equilibrado mas, ainda assim, na prática, muitas vezes excessivo; e, por isso mesmo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) que estabelece, sem possibilidade de recurso, os standards europeus da liberdade de expressão tem, por diversas vezes, condenado o nosso país por sobrevalorizar o segredo de justiça nesse conflito.

Mas desta feita, no caso Bédat contra Suíça, a Grande Câmara do TEDH deu razão ao Estado suíço que condenara um jornalista por publicar informações constantes de um processo criminal ainda em segredo de justiça, nomeadamente, os interrogatórios do arguido e cartas que este escrevera ao juiz de instrução.

O caso respeitava a um condutor que, em 8 de Julho de 2003, tinha avançado com a sua viatura contra um grupo de peões, matando três e ferindo oito antes de se atirar da ponta de Lausanne abaixo. Em 15 de Outubro, o jornalista Arnaud Bédat a quem tinha sido entregue um dossier contendo cópias de numerosas páginas do processo-crime, perdido por um dos advogados num centro comercial, publicou um extenso artigo com o título “Tragédia na ponte de Lausanne”. Nesse artigo, o jornalista resumia as perguntas feitas pelos polícias e pelo juiz de investigação bem como as respostas do arguido, referia que o mesmo tinha sido acusado por diversos crimes que identificava e, ainda, que não tinha mostrado quaisquer sinais de remorsos durante o interrogatório, qualificando-o como o “condutor maluco”. Publicava, também, fotografias das cartas enviadas pelo arguido ao juiz, à volta das suas condições prisionais sob o título “Passou-se da cabeça”.

Embora o arguido não se tenha queixado, o Ministério Público suíço avançou com um processo-crime por violação do segredo de justiça e da privacidade do condutor-arguido tendo o jornalista sido condenado numa multa de 2.667,00 euros. Queixou-se então ao TEDH por violação da sua liberdade de expressão e o TEDH, em 1 de Julho de 2014, por 4 votos contra três, deu razão ao jornalista. Face à divisão dos juízes do TEDH, a Suíça requereu que o caso subisse à Grande Câmara do Tribunal e, no passado dia 29 de Março, a decisão foi outra: afinal a Suíça não violara a liberdade de expressão ao condenar o jornalista; no caso concreto, entendeu a Grande Câmara, justificava-se a prevalência do respeito do segredo de justiça e da defesa da privacidade do condutor-arguido sobre a liberdade de expressão. As notícias, no seu entender, eram sensacionalistas, alimentando o espírito voyeur do público e o jornalista não provara que a publicação das cartas fosse relevante para o debate público.

Como é bem salientado nos dois excelentes votos de vencido dos juízes López Guerra e Yudkovska, esta decisão enfraquece a dimensão da liberdade de expressão no nosso continente por oposição à jurisprudência do Supremo Tribunal norte-americano. É, pois, uma decisão que não se aplaude.

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