O renascimento das milícias americanas está a começar no Oregon

Grupo armado ocupa desde 2 de Janeiro uma reserva natural administrada pelo governo dos EUA. Milícia garante que só sai quando as terras forem devolvidas aos habitantes locais.

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A ocupação começiu no dia 2 de Janeiro Joe Raedle/AFP

À medida que os dias vão passando sem notícias de violência entre a polícia e o grupo armado que ocupou uma reserva natural no estado norte-americano do Oregon, no início do ano, cresce a sensação de que tudo não passa de mais uma extravagância daqueles rednecks da América profunda que são ridicularizados nos filmes de Hollywood.

A milícia liderada pelos irmãos Ammon e Ryan Bundy é a "Y’all Qaeda", o "Vanilla ISIS", e eles são os "Talibundy", brincam os utilizadores do Twitter. Mas lá longe, no terreno, num complexo pré-fabricado a 50 quilómetros da povoação mais próxima, pode estar a nascer uma nova e preocupante vaga de insurgência nos EUA – e, desta vez, motivada por reivindicações que são partilhadas mesmo por muitos dos que não concordam com a ocupação.

No dia 2 de Janeiro, os 2800 habitantes da pequena cidade de Burns, centro administrativo do gigantesco condado de Harney, no Oregon rural, foram atirados para o centro das atenções. Dezenas de homens armados entraram nas instalações do governo norte-americano na Reserva Natural de Malheur e fecharam a porta por dentro, garantindo que só sairiam de lá quando todos aqueles 760 quilómetros quadrados fossem "devolvidos aos seus legítimos proprietários" – os habitantes e criadores de gado da região, e não as agências governamentais dirigidas a partir da capital federal, Washington D.C.

O primeiro pretexto para a ocupação foi o regresso à cadeia de Dwight Hammond e do seu filho Steve Hammond, dois criadores de gado do condado de Harney com um passado de confrontação com agências federais. Em meados da década de 1990, pai e filho foram detidos por boicotarem a construção de uma barreira que separava os terrenos públicos dos seus terrenos; e em 2012, Dwight foi condenado a três meses de prisão e o seu filho a um ano e um dia, ambos acusados de fogo posto em terrenos federais, em 2001 e 2006, alegadamente para protegerem o seu gado.

Os tribunais condenaram os Hammond, mas a sua causa era cara a muitos outros criadores da região – e de outras zonas rurais nos EUA –, que têm de pagar para que o seu gado possa pastar em terrenos do governo federal, a quem não reconhecem autoridade para tomar decisões sobre direitos de propriedade no seu estado. Para inflamar ainda mais os ânimos, o Ministério Público do Oregon não ficou satisfeito com a sentença aplicada em 2012, e em Outubro de 2015 Dwight e Steve Hammond foram obrigados a cumprir cinco anos de prisão cada um, com o início da nova pena marcada para 4 de Janeiro deste ano.

Os irmãos Bundy
Dias antes, ainda em Dezembro, o empresário Ammon Bundy, de 41 anos, e o seu irmão Ryan, de 43, partiram do Arizona para o Oregon com a missão de pegarem na bandeira que os Hammond deixariam cair quando entrassem na cadeia, mas não tiveram a recepção que esperavam. Depois de terem organizado uma manifestação pacífica em defesa dos Hammond, no dia 2 de Janeiro, que contou com a participação de centenas de pessoas, os Bundy e um grupo mais pequeno separaram-se do protesto e acabaram o dia a ocupar a Reserva Natural de Malheur, contra a vontade de muitos habitantes e criadores de gado da região, incluindo Dwight Hammond e Steve Hammond – que, através do seu advogado, fizeram saber que "nem Ammon Bundy nem ninguém do grupo ou da organização dele falam em nome da família Hammond".

Tornara-se evidente que o verdadeiro objectivo de Ammon Bundy e dos seus rebeldes armados ia muito para além da solidariedade com a luta dos Hammond, e até mesmo das queixas da maioria dos criadores de gado de toda a região. Dwight e Steve foram transformados à força numa espécie de mártires das milícias paramilitares que se opõem à intervenção de um governo central na vida privada e profissional de cada cidadão, e que se reservam o direito a derrubá-lo perante a ameaça da tirania – um conceito que também se reservam o direito a definir.

Calcula-se que nos EUA haja neste momento pelo menos sete milícias activas, depois de uma época de ouro para o movimento na década de 1990, marcada por vários episódios de violência em confrontos com a polícia federal. Depois dos cercos ao supremacista branco Randy Weaver e à seita religiosa de David Koresh, em 1992 e 1993; e do atentado à bomba contra um edifício do governo em Oklahoma, em 1995, os EUA chegaram a ter 858 grupos activos.

A influência religiosa
Entre o movimento há grupos com várias motivações – extrema-direita, supremacistas brancos, libertários, extremistas religiosos, e um pouco de tudo isto misturado. No caso do grupo que ocupou no início de Janeiro a Reserva Natural de Malheur, no Oregon, é impossível não reparar na influência do fundamentalismo religioso, personificado por Ammon Bundy e a sua visão mais extremista do mormonismo.

"Muitos mórmones foram perseguidos no início da sua religião [na primeira metade do século XIX]. Quando foram para o Utah [também no Leste dos EUA, perto do Oregon e do Arizona], estavam apostados em criar o seu próprio país", disse à NPR John Sepulvado, repórter do serviço público de rádio e televisão do Oregon. "Entretanto, os mórmones mais tolerantes foram-se afastando dessa ideia", e hoje em dia há várias personalidades da primeira linha da política norte-americana que professam abertamente a religião – Mitt Romney, antigo governador do Massachusetts e ex-candidato à Presidência dos EUA pelo Partido Republicano, é talvez o mais destacado.

"Estes não lutam pela criação de um novo país, mas ainda há pessoas que se baseiam nessa tradição, e que sempre tiveram problemas com o governo federal", explica John Sepulvado.

Assim que se soube da ocupação da reserva natural, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias apressou-se a distanciar-se da acção liderada por Ammon Bundy. "Os líderes da igreja condenam de forma veemente a ocupação armada das instalações e estão profundamente preocupados com os relatos de que os responsáveis sugerem estar a agir com base nos princípios das escrituras. Esta ocupação armada não pode de forma alguma ser justificada com base nas escrituras", lê-se num comunicado da igreja com sede em Salt Lake City, no estado do Utah, e que é a quarta maior denominação cristã nos EUA, com cerca de 15 milhões de fiéis.

Num vídeo publicado no YouTube na véspera da ocupação da reserva natural no Oregon, Ammon Bundy já tinha respondido à pergunta que meio mundo fez assim que viu um grupo de homens armados a entrar em terrenos públicos e a reclamar direitos sobre essa propriedade – foi Deus que lhe disse para agir.

"Comecei a perceber como o Senhor se sentia em relação ao condado de Harney e a este país, e percebi com clareza que o Senhor não estava satisfeito com o que estava a acontecer aos Hammond. O que lhes estava a acontecer seria o início do que iria acontecer ao resto do povo deste país."

Pensar na ocupação no Oregon pela milícia dos irmãos Bundy como apenas mais uma extravagância daqueles rednecks da América profunda que são ridicularizados nos filmes de Hollywood, é algo que as autoridades norte-americanas não estão a fazer, apesar das acusações de dois pesos e duas medidas – para muitos, se o espaço tivesse sido ocupado por jovens negros, ou por extremistas islâmicos, a questão já tinha sido resolvida há muito tempo, possivelmente com violência.

Mas os casos não devem ser comparados, disse à revista The Atlantic Steve Ijames, um antigo polícia e especialista no uso da força em situações de tomada de reféns e ocupações.

"Não é um assalto a uma escola, em que é preciso agir de forma dramática. Temos um protesto em forma de ocupação de propriedade pública. É óbvio que eles estão a fazer isto com base num ideal, seja ele qual for. Num certo sentido, não é muito diferente do conceito do Black Lives Matter: confrontar o governo, confrontar as pessoas que detêm o poder", disse o especialista, numa referência ao movimento que tem organizado formas de protesto contra a morte de jovens negros baleados por polícias brancos.

Ainda assim, o jornal The Oregonian descobriu que os quartos dos hotéis das redondezas estão reservados pelo FBI e outras agências pelo menos até Março. Ninguém fala de uma ofensiva da polícia – que poderia resultar num banho de sangue, como aconteceu na quinta de Waco, no Texas –, e os líderes da milícia dizem que só vão recorrer à força se forem provocados.

Mas é o vídeo de um outro líder da milícia, Jon Ritzheimeir (um ex-marine conhecido pelo seu discurso de ódio contra muçulmanos), partilhado no YouTube no dia 4 de Janeiro, que deixa tudo em aberto sobre a forma como vai terminar esta ocupação e o cerco que a polícia montou à distância.

Antes de explicar o que o levou a juntar-se aos Bundy, Ritzheimeir fala para as filhas, enquanto limpa as lágrimas, numa mensagem que está a ser interpretada como uma despedida: "Amo-vos tanto... Vocês só têm três e cinco anos, e não percebem o que se passa. O vosso pai jurou proteger e defender a Constituição contra todos os inimigos, externos ou internos. É por isso que não pude passar o Natal convosco, nem o Ano Novo. Sinto muita a vossa falta. Têm de ser boas para a vossa mãe."

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