Uma questão para o rei de Marrocos: quem matou Mouhcine Fikri no camião de lixo?

Um caso tétrico, que faz lembrar o início da revolução tunisina, revoltou os marroquinos e põe em xeque a monarquia.

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Manifestação em Al-Hoceima, em memória de Mouhcine Fikri REUTERS

Quem carregou no botão que ligou o compactador do camião do lixo em que morreu Mouhcine Fikri, o vendedor grossista de peixe de Al-Hoceima, uma cidade do Norte do Marrocos, no rebelde Rif? O procurador-geral da cidade avançou com acusações contra 11 pessoas envolvidas no caso, os primeiros resultados do inquérito após a morte horrível de Fikri, que chocou o país e desencadeou manifestações em várias cidades, a uma semana de Marrocos ser palco de um grande encontro diplomático, a cimeira do clima da ONU.

Entre as 11 pessoas enviadas para o juiz de instrução estão dois polícias, o responsável e o chefe de serviço da Delegação de Pesca Marítima de Al-Hoceima e o médico-chefe da Medicina Veterinária, especificam os media marroquinos. Terão de responder pela acusação de homicídio involuntário de Mouhcine Fikri, o comerciante de 31 anos que entrou no contentor do camião do lixo porque lhe foram apreendidos e enviados para destruição 500 quilos de espadarte – considerados impróprios para consumo porque foram apanhados numa época de defeso.

Fikri não tinha a documentação adequada para que esta carga valiosa de peixe pudesse ser considerada legal. Mas, nesta história muito mal contada, a decisão de mandar destruir o peixe terá sido tomada ainda antes de este ter sido apreendido. O que, no raciocínio do procurador, equivale a “falsificação de documentos públicos”, diz a edição online do semanário marroquino Tel Quel.

O revendedor, no entanto, não se terá conformado com a apreensão da carga, e tentou recuperar algum do peixe, saltando para dentro do camião. E então, é ligado o compactador de lixo. Segundo o Tel Quel, o condutor recebeu ordem de um funcionário da empresa para qual trabalha para o ligar – mas não é claro quem o terá feito. A justiça não avança pistas.

No entanto, alguém estava a filmar, com um telemóvel, e colocou o vídeo na Internet – e é horrível, porque se ouvem gritos, e vê-se quando é esvaziado o camião. O vídeo foi colocado no Facebook, no Twitter, e desencadeou uma reacção de horror, e protestos a nível nacional, em que se ouviram palavras contra o Makhzen – o termo usado para descrever o Palácio Real. “Mohcine foi assassinado, a culpa é do Makhzen”, ouviu-se nas manifestações de Casablanca e na capital, Rabat, além das cidades do Rif, onde fica Al-Hoceima. A última onda de protestos foi na segunda-feira à noite.

Os protestos são raros em Marrocos, mas quando ocorrem é bem possível que seja no Rif, região de cultura berbere e não árabe, marginalizada desde antes da criação do reino de Marrocos, quando fez parte do Protectorado Espanhol, e martirizada várias vezes por nunca ter aceitado de bom grado a monarquia.

Em 1958, já depois da criação do reino de Marrocos, o rei Mohamed V enviou milhares de soldados para suprimir uma revolta no Rif, de que resultaram muitas mortos e uma vaga de emigração para Europa. Hassan II, o sucessor, esmagou os protestos da década de 1980 com igual ferocidade – e referiu-se ao povo do Rif como “selvagens e ladrões.”

Em 2011, no embalo das revoltas das Primaveras Árabes, houve protestos que começaram no Rif. Mas o Movimento 20 de Fevereiro, que nasceu nas redes sociais e saiu pela primeira vez à rua nessa data, pedia reformas democráticas, limitações ao poder da monarquia. O que conseguiram foi uma revisão constitucional que é mais uma ilusão de abertura.

Agora, muitos quiseram ver semelhanças entre o suicídio do vendedor de rua tunisino Mohamed Bouazizi, que se imolou depois de ter sido alvo de abusos pela polícia, e deixado sem meios de subsistência, que desencadeou a revolução na Tunísia. Mas o rei, que tem seguido uma política de hiperdesenvolvimento do Rif – em vez de impor o Estado pela violência – seguiu uma via diplomática.

Enviou o ministro do Interior a Al-Hoceima, para dar os pêsames à família de Mouhcine Fikri, e assegurar que serão punidos os culpados. A questão está em saber quem será o acusado de ter carregado no botão do compactador de lixo.

 

 

 

 

 

 

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