O reencontro dos europeus com a Europa

Uma União Europeia moderna, competitiva, solidária, justa e progressiva é o que os europeus necessitam.

A Europa está a ser demais para a própria Europa,  Thomas Sedlacek

1. Este texto não se pretende politicamente conveniente. Procura ser um contributo para o debate em curso para o estado da Europa e sobre o que fazer para que a Europa não perca o seu futuro. Resulta de um pensamento que de há muito procura perceber a natureza das coisas e o devir da Europa.

Parte da premissa segundo a qual tudo o que começou, também acaba. Tudo o que vive nasceu e morrerá. Assim sucede com os seres humanos, com as nações e com as próprias culturas. Foi assim no passado com as civilizações mesopotâmica, grega, persa ou romana, com os impérios Carolíngio ou dos Hohenstaufen, mas também com as culturas chinesa, inca ou azteca. Será assim, infelizmente para nós, também com a atual Civilização Europeia, senão estivermos à altura das responsabilidades, de ultrapassar muito dos seus bloqueamentos.

2. Fruto em grande medida do génio e do esforço dos portugueses, a Europa estendeu a partir do século XV a sua influência e o seu poder às restantes partes do mundo, iniciando verdadeiramente a era da globalização pela via geográfica mais favorável que é a das comunicações marítimas. Seguiram-se-nos holandeses, franceses e, sobretudo, ingleses.

Mas com várias diferenças. Cumprindo as leis do crescimento espacial dos Estados, construíram-se grandes impérios modernos, uns assentes no poder marítimo, economicamente mercantis e politicamente mais liberais, outros firmados numa base continental, economicamente agrícolas e de organização política mais centralizadora. Contudo, uns e outros dedicados à luta pelo espaço (Kampf um Raum), por via de alianças e da aquisição de novos territórios, bem como pela exploração das riquezas da terra, aliás de um modo cada vez mais extensivo e intenso.

3. Assim, no final do primeiro quartel do século passado, encontravam-se constituídos quatro grandes impérios mundiais: o britânico, que cobria em todos os continentes uma área de quase 40 milhões de quilómetros quadrados da superfície terrestre; a União Soviética, um Estado-continente com cerca de 19 milhões de quilómetros quadrados; a França, ocupando uns nove milhões de quilómetros quadrados; e os EUA com perto de dez milhões de quilómetros quadrados. Por junto, só essas quatro grandes potências ocupavam mais de 60% da superfície emersa da terra.

Revolucionado o mundo com a Guerra de 1939-45, seguiu-se o período da Guerra Fria, que opôs essencialmente as duas grandes potências mundiais (Weltmächte) vencedoras do conflito que alguns consideram ter sido o último ato da Segunda Guerra dos Trinta Anos – a então União Soviética e os EUA –, cada uma liderando blocos político-militares (Pacto de Varsóvia e NATO), que agregavam os países seus satélites ou aliados.

De um lado, Estados totalitários e, em regra, assentes numa base continental, apostados em dominar o Heartland (Mackinder) a Terra Coração – e, do outro, Estados maioritariamente democráticos e marítimos, que procuravam cercar e conter a potência continental a partir do Rimland (Spykman), isto é, das regiões periféricas. Sabemos como soçobrou o poder soviético e a ameaça que representou para o mundo considerado livre. Sabemos igualmente como as descolonizações do pós-guerra determinaram o fim da hegemonia europeia no mundo. Mas também sabemos que o fim do dualismo mundial deu origem a uma multipolarização, numa nova ordem que os EUA impulsionaram mas se revelaram incapazes de dirigir, antes contribuíram para agravar nas suas crescentes incertezas.

4. Certo é que a luta pelo domínio mundial se continua a disputar nas regiões periféricas do Heartland – ou seja, na cintura interior que compõe o Rimland, e que vai da Europa ocidental ao Extremo oriente, passando pela Ásia meridional, desde o Mediterrâneo oriental ao Golfo Pérsico. A diferença está em que agora, ao contrário do que sucedia no tempo da Guerra Fria, se juntaram factores novos de carizes anarquizantes e fragmentários. Outrossim, a concepção convencional da luta pelo domínio global, principalmente assente no poder político-militar, tem cedido paulatinamente a novas formas e estratégias de hegemonia, em que grandes grupos e interesses financeiros e económicos conceptualmente internacionalistas assumem um peso cada vez mais decisivo e controlam crescentemente os Estados nacionais e as suas políticas.

Finalmente, o terrorismo moderno, as engenharias sociais, os populismos, a insegurança global, as migrações e pressões demográficas, principalmente oriundas dos continentes asiático e africano em direção ao Ocidente, constituem-se como outras faces de um Novo Mundo que ainda não há muito julgávamos impossível de existir. Perante esta nova realidade que se nos impõe – a nós, Europeus – cumpre escolher entre deixar seguir o curso atual ou afirmar a nossa vontade de defender a nossa maneira de ser, os nossos valores e a nossa cultura. Se o primeiro dos caminhos inevitavelmente conduzirá ao nosso progressivo decaimento, cabe rejeitá-lo. No segundo, mais difícil, reside a última esperança de uma Europa europeia.

5. A herança cristã, o humanismo, a solidariedade, mas também a defesa do espaço político e da ordem social, por oposição ao materialismo hedonista, ao egoísmo dissolvente, ao internacionalismo anarquizante, ao laicismo radical, constituem-se como aspectos-chave da preservação e mesmo do ressurgimento dos países europeus e da própria Europa que na prática tem dado sinais de ser não só um anão militar, como também cada vez mais um anão político e um gigante económico com pés de barro.

Nesta perspectiva revela-se fundamental que os europeus reencontrem a Europa e as suas raízes. Dar novamente voz aos cidadãos, responder aos seus anseios e preocupações, dar corpo aos seus sonhos de paz, liberdade, justiça, segurança e bem-estar, abandonar quimeras que apenas comprometem a subsistência do próprio espaço em que vivemos e se pretende organizado. Detonando a obsessiva unipolaridade normativa de cariz europeu e também fazendo regressar a observância dos princípios de Vestefália na relação com os demais Estados não europeus.

6. Quando se comemoram os 60 anos do Tratado de Roma, importa não esquecer que o projeto europeu não se pode abstrair daquelas realidades. Os cantos de sereia dos populismos, sejam de extrema-direita ou de extrema-esquerda (os extremos que se tocam), só podem ser travados quando e se as forças políticas moderadas, sobretudo o centro político, acreditarem novamente na União Europeia como comunidade de destino comum dos povos europeus e souberem merecer a confiança dos cidadãos e dos seus eleitorados naturais.

Até porque uma União Europeia moderna, competitiva, solidária entre os povos que a constituem, aberta mas não escancarada ao mundo, socialmente mais justa e progressiva, ciente da necessidade absoluta de promover o seu próprio rejuvenescimento demográfico, capaz de perceber e combater uma cultura endofóbica dissolvente, é aquilo que a Europa e os europeus necessitam. Estes são alguns dos desafios que se colocam aos decisores europeus. Tendo sempre presente a unidade dentro da diversidade dos vários povos do sul, do centro e do norte da Europa.

Se o não percebermos não haja ilusões: decairemos e uma outra vida virá mas cada vez mais sem nós, os Europeus.

Afinal, já ensinava Aristóteles, a Natureza tem horror ao vazio

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