O que tira o sono a Guterres

Sobre a burocracia da ONU, Trump diz mata e Guterres diz esfola. O mundo espera que esta (única) sintonia entre os dois produza resultados reais.

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Há dias perguntaram a António Guterres o que lhe tira o sono à noite. “A burocracia”, respondeu. "As estruturas fragmentadas, os procedimentos bizantinos, a papelada sem fim."

Poderá não ser para levar à letra, mas foi com esta história que o secretário-geral das Nações Unidas abriu a peculiar reunião sobre a reforma da organização que Donald Trump inventou esta semana.

Guterres sabe que era isso que o Presidente norte-americano, sentado ao seu lado, queria ouvir e não pode desperdiçar esta ponte de diálogo com Trump por duas razões simples. É praticamente a única e os EUA contribuem com 22% do orçamento geral e 28% do orçamento das operações de manutenção de paz da ONU. Quando o tema é reduzir burocracia, agilizar processos, acelerar decisões e cortar redundâncias, Guterres e Trump falam a mesma língua. Trump mata, e Guterres esfola.

Guterres não é uma excepção. Os altos funcionários da ONU sempre foram brilhantes nos exercícios de autocrítica. Não haverá melhor no mundo. Há dez anos, quando chegou às Nações Unidas, até o simpático Ban Ki-moon, seu antecessor, abriu o discurso de estreia perante a Assembleia Geral falando da necessidade de tornar a ONU "mais eficaz". Um diplomata chamou-me a atenção para os esforços desses anos e para a reforma Delivering as One, lançada em 2006 para melhorar a coerência e coordenação das diferentes agências do braço do desenvolvimento da ONU, um dos três pilares da organização. O slogan era "Um líder. Um programa. Um orçamento. Um escritório. Uma voz". Perguntei a um alto funcionário que trabalha neste pilar há anos se a reforma teve um impacto real na sua forma de trabalhar, agora que já passaram dez anos. A resposta veio em duas formas. A brincar (sim, os emails mudaram todos para @one.un.org, acrescentaram o "one" a seguir à arroba) e a sério: "Teve impacto, especialmente em países onde foi implementada de forma completa e o coordenador-residente da ONU conseguiu exercer influência sobre toda a 'família da ONU' no terreno, de modo a maximizar o valor e o impacto dos diferentes mandatos e recursos e capacidades disponíveis." Basta imaginar um país com equipas do PNUD, da Organização Mundial da Saúde, do Habitat, do... cada um a trabalhar de forma isolada e para dentro. A metros de distância uns dos outros.

Conversa de tecnocrata? Não é. Juntar "todas as ONU" que trabalham num mesmo país e colocá-los num só escritório é tudo menos burocrático. É uma forma, justamente, de cortar na burocracia e criar a "ONU mais eficaz" de que Guterres e Trump tanto falam.

Mas não chega. E Guterres sabe bem isso. “Às vezes perguntou-me se houve uma conspiração para tornar as nossas regras exactamente naquilo que elas precisam de ser de modo a impedirem-nos de sermos eficazes.”

A reforma que precisa de ser feita, disse Guterres, é para as pessoas que a ONU serve e é para os contribuintes que pagam os seus impostos e, com eles, os Estados-membros pagam as contribuições para a organização.

Guterres começou por mexer num dos cancros do sistema que é a impunidade dos "capacetes azuis" acusados de exploração e abuso sexual dos civis nos países onde estão a manter a paz (propondo que a ONU deixe de pagar aos Estados que não investiguem as acusações "em tempo útil" e redireccionando esse dinheiro para um fundo de apoio às vítimas); pela paridade de género (até agora, as suas nomeações incluem mais de 50% de mulheres); pela protecção dos que, dentro da ONU, denunciam abusos e falhas da própria organização; e pelas estruturas de contra-terrorismo (reforçadas). Na semana passada, pôs em discussão uma nova arquitectura do pilar da paz e segurança, que juntará, "como siameses", as chefias militares e civis, e prevê a fusão — literal — de todas as estruturas nas regiões, que, a ser aprovada pela assembleia, fecha uma discussão interna com 25 anos.

Ao fim destes primeiros nove meses, já se pode dizer que Guterres está a iniciar um caminho que indica uma vontade de ficar na história como um reformador. Tem riscos, exige talentos e esforços particulares. Mas é uma boa estratégia. Mais do que as guerras, é na estrutura da ONU que a “iniciativa” do CEO do mundo pode fazer a diferença.

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