O profeta da nova esquerda

É preciso uma esquerda alternativa e é preciso apontar um caminho. O filósofo, político e teórico social brasileiro Roberto Mangabeira Unger traça um roteiro para Portugal, que no fundo pode ser, em grande parte, um roteiro para o resto do mundo. Ambição? Utopia? Talvez só profecia.

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Roberto Mangabeira Unger observa atentamente o quadro. Recua. Aproxima-se da ficha que o identifica. Figura de Velho, Rembrandt Harmensz van Rijn, Holanda, 1645. Volta a recuar para o ver melhor. Um velho segura uma bengala e olha, entre o angustiado e o curioso, para algo que está fora do quadro, que nos dá mais sombra que luz. Unger — um dos mais importantes pensadores da actualidade, de dupla nacionalidade, brasileira e norte-americana — está a visitar o Museu Gulbenkian, depois de um almoço com o historiador, ex-eurodeputado e dirigente do partido Livre, Rui Tavares. O velho do quadro nunca foi identificado. Mas Rui Tavares dirá minutos depois à Revista 2 que era frequente judeus portugueses posarem para o pintor. E, a ser esse o caso, lança-se aqui uma ponte. Esses judeus eram massa crítica e pensante e a sua expulsão de Portugal provocou um esvaziamento. O mesmo fenómeno está a acontecer agora, não por perseguições da Inquisição, evidentemente, mas por pressão da crise económica. E isso, afirmara já Unger durante o almoço, “é uma calamidade para o país”.

Quem é então Roberto Mangabeira Unger? Filósofo, teórico social, político e, sim, revolucionário, porque acredita que a mudança radical é possível e desejável — o homem tem direito a uma vida maior e o Estado tem obrigação de lhe dar as ferramentas para a alcançar. O mundo é uma construção, fruto da imaginação, e há que usá-la para mudar o que tiver de ser mudado. Considera-se um realista, já que essa mudança pode ser feita a partir da forma como a sociedade está actualmente organizada. Vivemos numa “ditadura da não alternativa”, mas há alternativas que estão ao nosso alcance. Acredita que as mudanças podem ser substanciais, sem ser dogmáticas, mas será preciso uma nova esquerda para as pôr em prática. Serão precisas novas ideias. “Precisamos desesperadamente da política”, disse uma vez.

Haverá alguma dose de pragmatismo em Unger, que foi membro do Governo de Lula da Silva entre 2007 e 2009, com a pasta dos Assuntos Estratégicos — chamavam-lhe “ministro das ideias”. Depois voltou para Harvard, onde ensina Direito (Barack Obama foi seu aluno e, se tivesse de o avaliar agora enquanto Presidente dos EUA, iria certamente chumbá-lo). Escreveu mais de uma dezena de livros; arquitectou as candidaturas às presidenciais de Leonel Brizola e Ciro Gomes nas décadas de 1980 e 1990; e candidatou-se ele próprio em 2006. Em 2008, Lula encarregou-o de coordenar o conselho gestor do Plano Amazônia Sustentável (PAS), em detrimento da então ministra do Ambiente, Marina Silva, e a decisão levou-a a abandonar o Executivo (e precisamente hoje disputa o mais alto cargo do Brasil). Nasceu no Rio de Janeiro há 67 anos, mas cresceu em Nova Iorque, e o seu sotaque denuncia-o.

Veio a Lisboa a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos para o 3.º Encontro Presente no Futuro — “À Procura da Liberdade”, onde ontem foi orador. Antes disso, sentou-se na cafetaria da biblioteca da Gulbenkian, pousada sobre o jardim, para uma conversa com Rui Tavares sobre o que Portugal pode fazer para seguir um caminho distinto. Uma verdadeira agenda, que se aplica ao país e não só. Não o ouviremos utilizar a palavra “socialismo” — “ninguém sabe o que é, tornou-se uma abstracção”, afirmou há tempos numa entrevista à BBC. Mas defenderá várias vezes um Estado forte e interventivo. É respirar fundo e segui-lo, porque o seu pensamento está totalmente organizado, encadeado, sem muitos parênteses.

“A mim, como alguém observando de longe, o que mais impressiona é a sensação de prevalecer um único projecto no país”, começa por dizer. Este projecto tem duas caras. “A cara dura é a proposta de radicalizar a austeridade e conter os salários. E a cara suave é a ideia de manter a essência dos direitos sociais, mas reconciliar essa defesa dos direitos sociais pela retaguarda, com a tentativa de agraciar o grande capital, para estimular o investimento nacional e estrangeiro em torno das grandes empresas e com isso sobrar algum excedente económico para financiar as políticas sociais compensatórias.” No fundo, ambas são actualmente inúteis.

E é por isso que no seu livro The Left Alternative — onde começa por dizer que “a promessa de democracia está por cumprir” — sustenta que “a esquerda está perdida”. Ou, mais especificamente, as duas esquerdas que subsistem estão condenadas: a que quer desacelerar o ritmo da globalização e da marcha para a economia de mercado sem oferecer um caminho alternativo; e a que, rendida, aceita o sistema tal como ele é, pretendendo apenas humanizá-lo. “Precisamos de uma terceira esquerda, empenhada em democratizar a economia de mercado e em aprofundar a democracia”, escreve. Não se trata de deter a globalização, mas de redireccioná-la, “de forma a tornar o mundo mais seguro para uma pluralidade de poderes, de visões e para as experimentações nacionais, das quais depende o nosso sucesso em conseguir maior inclusão, oportunidade e capacidade”.

Mas a tendência actual não é essa, afirma agora. “O que prevalece nos dois lados do Atlântico, na cabeça das elites mais iluminadas, é o projecto de fazer uma espécie de síntese entre a protecção social dos europeus e a flexibilidade económica dos americanos. Uma flexibilização da social-democracia tradicional. E portanto é o mundo imaginativo em que todo o mundo finge ser social-democrata ou social-liberal. O que é o social? Social é o açúcar, o açúcar com que se pretende dourar a pílula do modelo económico.”

A origem disso, adianta, está no compromisso histórico da social-democracia, tomado em meados do século passado, que levou “ao abandono de qualquer esforço de reinventar a organização institucional da produção e do poder, e em troca disso permitir ao Estado atenuar as desigualdades através de políticas compensatórias, manejar a economia por políticas contracíclicas keynesianas e assegurar o lucro das empresas”. Mantendo-se este compromisso, não há solução possível para “nenhum dos problemas fundamentais das sociedades contemporâneas… Temos de reabrir os termos desse compromisso, inovar nas instituições que organizam a economia de mercado e a democracia política”.

Unger diz-se impressionado com “a ausência de qualquer desenho de uma estratégia nacional portuguesa, de uma tentativa de construir novas vantagens comparativas em Portugal e dar instrumentos aos portugueses para construir, para criar, para inovar”. Não é uma fatalidade. “Eu tenho a intuição de que existe uma alternativa e que a discussão deve começar pelo debate sobre o conteúdo dessa alternativa. Aí, só citando os grandes temas.”

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E que temas são esses? São os temas que têm ocupado grande parte do seu trabalho dos últimos anos. Na conversa desta semana, Unger orientou-os para a realidade portuguesa. “O primeiro é o desenho de um paradigma produtivo, que num vocabulário contemporâneo a gente chamaria de um pós-fordismo vanguardista e inclusivo.” Consiste em tornar as pequenas e médias empresas protagonistas da economia, que através de parcerias com o Governo conseguiriam ter acesso a práticas produtivas mais avançadas. “Quer dizer, trazer esse empreendedorismo pequeno-burguês que costuma ser retrógrado, tecnológica e cognitivamente, para mais próximo da vanguarda produtiva.” Ou dito ainda de outra forma, ultrapassar o modelo da produção em massa que não permite imaginação e criatividade e ampliar o acesso das pequenas e médias empresas aos sectores da inovação.

Não há uma economia de mercado inclusiva se o trabalho for precário, como actualmente acontece, não só em Portugal como na maior parte do mundo (e este é o seu “segundo grande tema”). “É preciso construir um regime jurídico distinto para proteger, organizar e representar esta maioria precarizada. Portugal não deve apostar no aviltamento salarial e na desqualificação da força de trabalho. Não deve imaginar que possa prosperar como uma China com menos gente. Portugal é um exemplo importante porque sobrevive essa cultura empreendedora pequeno-burguesa. De certa forma, o horizonte imaginativo da maioria é o horizonte imaginativo mais pequeno-burguês do que proletário. Falta um projecto capaz de vir ao encontro dessa realidade e torná-la mais dinâmica, fecunda e generosa.”

E daqui se parte para “a sangria do talento jovem”, quando na verdade esta é a geração que deveria estar a constituir a elite dos serviços (terceiro tema). “Os jovens são os mais enérgicos, os mais ambiciosos querem sair. E isso é uma calamidade para o país.” Na sua opinião, devem sair, até apoiados pelo Estado, desenvolvendo acções económicas, culturais e sociais, mas para regressarem “transformados com essas aventuras” e “sacudir” o país. “Isso deve ser um grande projecto nacional.”

A quarta vertente “é uma transformação radical do ensino público… [É imperativo um] ensino analítico que utilize a informação de forma selectiva e aprofundada como ocasião para capacitação analítica, cooperativo na sua maneira de ensinar e sobretudo dialéctico, abordando o conhecimento herdado sempre de formas contrastantes para criar, formar, burilar, desenvolver um impulso experimentalista inovador.” Não há imaginação num ensino de tipo enciclopédico como o actual.

Uma população com mais capacidade analítica poderá mais facilmente conduzir a inovação que é preciso trazer aos serviços públicos para os tornar mais qualificados (o quinto tema). “Não basta ter o paradigma tradicional de provisão burocrática de serviços públicos padronizados e de baixa qualidade. E nem aceitar a privatização dos serviços públicos como única alternativa a isto. O Estado tem de prover os mínimos universais, mas tem de engajar a sociedade civil independente, formá-la, financiá-la, coordená-la para que ela participe, junto com o Estado, na provisão competitiva e experimental dos serviços públicos. Por exemplo, por meio de cooperativas de educadores, de médicos, de técnicos.”

Há um tema “proibido” mas “inescapável” na política portuguesa: a renegociação da dívida pública. “Já está correndo em outros países, de forma velada ou clara, sob diferentes rótulos.” Em Portugal, é fundamental fazê-lo, defende, com o fim mais alargado “de reorganização das finanças privadas e públicas” (sexto tema). Esta reforma terá dois objectivos: “Construir sob o impulso estatal um sistema bancário descentralizado, à disposição sobretudo dos pequenos e médios produtores” — o que existe actualmente “é uma grande banca privada que joga na arbitragem da dívida pública”; e assegurar que o Estado português tem margem de manobra suficiente para conduzir “um projecto rebelde de desenvolvimento”.
Quando Unger chegou a Portugal, nesta semana, pediu para conhecer alguém de uma esquerda menos tradicional e não centrista com um discurso sobre a União Europeia. Daí o almoço com Rui Tavares. O filósofo brasileiro acredita que é preciso “pensar a relação de Portugal com a Europa” (sétimo tema). “Cada vez mais as normas que regulam as formas de organização económica e social são centralizadas aparentemente em Bruxelas e de facto em Berlim. E os direitos que determinam as capacitações dos cidadãos são delegados às instâncias locais. Deveria ser exactamente o oposto. A vocação da União é assegurar as capacitações de todos os seus cidadãos para que eles possam divergir e inovar, assegurando o máximo de latitude aos Estados-membros para divergir experimentalmente nas suas inovações.” Minutos depois dirá: “A União [Europeia deveria ser] como o pai que diz à criança: ‘Eu te asseguro, agora você saia no mundo e se aventure.’ É esse o papel do Estado, é o papel da União.”

As alternativas iriam certamente receber por parte dos seus opositores “o rótulo de subsídios”, mas Unger considera que é precisamente o contrário. “Quando Portugal aderiu aos tratados europeus, a elite governante, por um curto-prazismo, aceitou subsídios, despendeu-os no financiamento do consumo, ou em comprar submarinos da Alemanha, e aceitou a camisa-de-forças. Agora, Portugal tem de romper a camisa-de-forças. Não pode fazer sozinho, mas os outros países do Sul e do Leste europeu têm os mesmos interesses e portanto Portugal tem de aliar-se a esses países para a romper.”

Esta agenda de oito pontos termina com a recomendação de uma nova construção do Estado, “porque não existe um Estado capaz de fazer tudo isso”. Como é que se faz? Indo buscar três agendas para serem executadas em simultâneo: “Uma agenda do século XIX, inacabada, de profissionalismo administrativo meritocrático, das carreiras do Estado. O grau de profissionalismo [actual] é até menor em certos aspectos do que era no regime salazarista. Houve um sucateamento do Estado”; uma segunda agenda de “eficiência administrativa associada ao século XX” que não se pode basear “no fordismo industrial, mas nas práticas experimentais da produção nova”; e a agenda do século XXI, “de experimentalismo na administração pública”. Era útil, por exemplo, que a sociedade civil se empenhasse no serviço público, diz. “Não se sabe o caminho, o caminho tem de ser descoberto no meio do caminho.” Mas é preciso lançar um roteiro. Mais adiante, Unger apontará que “nenhum povo reforma a política, o Estado, para depois decidir o que fazer com a política ou o Estado reformados. Só reforma quando precisa reformar para sobreviver no meio de uma luta. Por isso tem de haver uma relação recíproca entre a construção do Estado e a reorientação do caminho”.

Tudo isto pode acabar numa conclusão como esta: “A minha impressão é de que não existe no debate português nada de semelhante. Há o ideário dominante, com a sua cara dura e a sua cara suave, há a nostalgia estatista e nacional da esquerda dura, mas não há isto que é a radicalização democrática do vanguardismo, do experimentalismo... A grande objecção poderia ser que um projecto como este não tem base social concreta. Eu julgo que tem, que há uma maioria latente produtivista no país. O que falta é a tradução desse potencial no caminho político e no ideário programático.”

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Unger com o ex-eurodeputado Rui Tavares, com quem almoçou esta semana na Gulbenkian

Rui Tavares gostou da ideia de haver em Portugal “um fundo cultural produtivista de realização pessoal”. Algo que alguns se calhar chamariam empreendedorismo. Unger explica: “A esquerda historicamente elegeu a pequena burguesia como inimiga. O resultado foram as calamidades do século XX, porque a pequena burguesia se tornou o sustentáculo dos movimentos de direita. Agora, no mundo, há mais pequeno-burgueses do que proletários. Se interpretarmos o proletariado no sentido marxista, da força de trabalho organizada nos sectores intensivos de capital, é uma minoria cada vez menor. E a maioria da humanidade tem um horizonte pequeno-burguês que quer uma modesta independência e prosperidade. Na falta de outros instrumentos, o que sobra é a ideia do pequeno empreendimento familiar. Mas não precisa ser assim. A tarefa é vir ao encontro dessa aspiração arcaica e reinterpretá-la, dar-lhe novos instrumentos e com isto fazer o trabalho da esquerda progressista, que é instrumentalizar a energia humana, criar a ocasião para uma vida maior em vez de ficar a providenciar o açúcar, como querem os supostos socialistas e sociais-democratas.”

O ex-eurodeputado quer saber onde é que o professor encontrou em Portugal “esse tipo de energias mais produtivas e criativas”. A resposta: “A realidade é que aqui é um caso muito claro de predominância desse espírito: cada um quer ter a sua bomba de gasolina, a sua quitanda [mercearia], aspira a um pequeno negócio. Este é o sonho arcaico que sobrevive e que, como eu digo, na falta de outros instrumentos, se refugia na ideia tradicional do empreendimento familiar isolado. Agora vem um outro elemento no fundo da imaginação histórica de Portugal: a dialéctica entre o caseiro e o universal. Isto é Portugal, o casamento dessa realidade económica da pequena burguesia com uma cultura que é muito caseira, muito voltada para si, mas ao mesmo tempo aberta ao mundo.” E observa: “A elite portuguesa, política, económica e cultural, não resgatou esta realidade nacional, não a reinterpretou, não procurou mobilizá-la para um novo projecto de desenvolvimento nacional. Em vez disso, rendeu-se, ficou de joelhos diante de Bruxelas, diante de Berlim, diante da globalização, aceitando essas realidades como um álibi genérico para a sua rendição. E procurou, dentro de uma mentalidade de Vichy, extrair para si rendas desse regime de rendição.”

A resignação é só uma das faces. Em determinados momentos, surge outra. “Quando há um movimento de sacudida, de repente a face da consciência colectiva se transforma. O caso clássico é a revolução portuguesa. Como é que de repente Portugal está cheio de militares revolucionários? Surgiram de onde? Já estavam lá, era o outro lado das pessoas.”

Este leva-nos para outro dos seus temas frequentes. Na crise está a oportunidade, mas é preciso saber operar a mudança sem ela. “Os países europeus tiveram momentos de aventura ou grandeza, mas invariavelmente associados às guerras. Esse é o ritmo da história europeia: guerra, acorda; paz, dorme… Não precisa da guerra para ficar acordado. Aí é que vem a grande tarefa da imaginação. Porque a obra da imaginação é fazer o trabalho da crise sem crise.”

E a tarefa do Estado, já o dissemos, é dar asas a essa imaginação. Como, por exemplo, através de instrumentos como a “herança social”. “Invés de poucos herdarem tudo, e os muitos herdarem nada, todo o mundo herda um pecúlio básico de direitos e de valores económicos do Estado… É, por exemplo, construir para cada cidadão um conjunto mínimo de activos que a pessoa pode usar em determinados pontos da sua vida: quando vai comprar uma casa, quando vai constituir uma família, quando vai abrir um pequeno negócio. A pessoa teria o seu pequeno trust [fundo], universalmente garantido pelo Estado. A ideia é abrir o espaço social e económico para o máximo de experimentação e ter como contrapartida disso uma área sagrada, sacrossanta, de que o indivíduo está protegido e tem as suas capacitações asseguradas para que não tenha medo de todas essas mudanças que ocorrem à volta.”

Utópico? Talvez só profético. Mas “qualquer política séria, transformadora, tem de ter um impulso profético e o método do profeta é ter uma visão de uma vida maior e apresentar determinadas iniciativas concretas como as primeiras prestações desse futuro. O profeta encara uma humanidade que, como São Tomé, só acredita quando toca na ferida; precisa de dizer: ‘Aqui está um exemplo tangível.’ Quando eu falava da alternativa portuguesa, é porque entendo aquelas oito vertentes como os primeiros passos de um caminho, que começam com o que existe agora.”

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