"O olhar diferente" da diáspora "incomoda"

Angolanos no exterior não votam porque não podem. A exclusão não está expressa na lei, mas não existem condições nas embaixadas para que todos os angolanos sejam incluídos.

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Conceição Legot nasceu em Luanda em 1938. Vive em França há quase cinco décadas Rui Gaudêncio
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Luís Manuel Dias dos Santos votou nas primeiras eleições de 1992. O mesmo não aconteceu em 2008 e 2012 Rui Gaudêncio
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Ulika Paixão tentou emitir documentos que faltavam para votar, não conseguiu Rui Gaudêncio

Conceição Legot, Luís Manuel Santos e Ulika Paixão saíram de Angola por motivos diferentes. As razões por que não regressaram também são distintas: saúde, família ou a guerra civil que devorou o país durante quase três décadas. Fazem parte dos cerca de 150 mil angolanos — a estimativa mais redonda da diáspora os cidadãos de Angola — no mundo. Em França, serão quatro mil. Em Portugal, segundo as estatísticas do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, são quase 17 mil.

A lei não prevê a sua participação nas eleições de amanhã. Em 2015, um grupo de angolanos a viver no exterior entregou na Assembleia Nacional, em Luanda, uma petição sobre o direito de voto para os angolanos na diáspora. Ainda nada mudou. O argumento — de que não existem condições nas embaixadas para que todos os angolanos sejam incluídos — não altera em nada o desejo que sentem de votar.

Geografia não explica exclusão

Conceição Legot vive há quase 50 anos em França e nunca quis ter a nacionalidade francesa. Em 1968, foi-lhe concedido o asilo político por este país a quem pediu para lho retirarem quando Angola foi independente em 1975. Até lá tinha um passaporte português e era perseguida pela PIDE, por ligações ao movimento de libertação. Nos anos 1980, Angola mandou-lhe um passaporte e Conceição conseguiu manter a nacionalidade portuguesa através do pai. Esse passaporte (de um país da União Europeia) permitiu-lhe ficar em França.

"Estou fora do país há décadas mas gostaria de participar nestas eleições como qualquer angolano", diz Conceição Legot. Aponta os exemplos das recentes eleições nos Estados Unidos e em França e da importância dada ao voto das diásporas destes países. "O factor geográfico não é suficiente nem bastante para os angolanos serem discriminados, para a exclusão dos angolanos", considera a historiadora, doutorada pela Sorbonne. "O facto de ter vivido em França não me extirpou o sentimento de angolanidade, muito embora eu também tenha neste país integrado valores e conhecimentos que fazem parte da minha personalidade."

Em tempos difíceis, vividos com outros angolanos fora de Angola por razões políticas, contou com a protecção da França. "Uma lista da PIDE, através do consulado de Portugal, foi entregue à Prefeitura da Polícia. Nós fomos chamados para nos dizerem que estávamos a ser procurados."

Conceição Legot saiu então para Praga, antiga Checoslováquia, um dos países do Leste que acolhiam jovens dos movimentos de libertação africanos para estudar, mas não se adaptou e regressou. Fez a sua vida em França, onde hoje os bisnetos lhe perguntam por que deixou Angola. "Tenho um dever para com eles de lhes explicar por que saí do meu país." Um dever para com eles, e com a nova geração que se questiona por que pessoas que participaram na luta não se incluíram depois na construção do país independente. Conceição quis voltar, mas o país estava mergulhado numa guerra civil de 27 anos.

Saíra de Luanda em 1961 quando ela e uma amiga foram as primeiras mulheres angolanas a serem presas. Foi-lhes aberto um processo pela PIDE. Antes delas, apenas fora presa uma médica portuguesa que também aderira à causa da independência de Angola, no tempo em que "falar do MPLA era um delito".

Com 21 anos, Conceição Legot tinha sido admitida no funcionalismo público, nos serviços de Economia. Como tal, seria penalizada através de uma demissão compulsiva, se participasse em actividades clandestinas.

"Jorge Eduardo da Costa Oliveira, que estava à frente dos Serviços de Economia, não concordava politicamente com certas decisões ligadas à ditadura de Salazar e foi ele que impediu que eu fosse demitida", lembra Conceição Legot.

A activista esteve presa três meses, antes de lhe ser concedida liberdade provisória, mas não chegou a ser julgada. "Mais uma vez, graças a Jorge Eduardo da Costa Oliveira, beneficiei de uma licença graciosa em Portugal, para não ser julgada pela PIDE. Era acusada de fazer parte de uma célula clandestina.

O nosso papel na elaboração de um estatuto da mulher angolana numa Angola independente era uma das acusações."

Várias vezes se cruzava nas ruas de Lisboa com o inspector da PIDE Reis Teixeira. Dizia-lhe: "Quando terminarem as férias, vou voltar, para ser julgada" – ao que o inspector respondia sugerindo que prosseguisse os estudos em Portugal (queria fazer Economia), e que colaborasse com a PIDE, conta.

Antes de terminar a licença graciosa, conseguiu sair de Portugal para ir para Espanha e França. E quando se viu fora de Portugal, enviou uma carta sem endereço de remetente, já de França, ao inspector "dando-lhe encontro numa Angola independente", diz rindo. Em Paris, trabalhou na empresa Printemps, onde lhe foi dada a possibilidade de se formar em Sociologia do Desenvolvimento, seguindo-se o doutoramento na Sorbonne.

Esta semana encontra-se em Lisboa, de passagem para Luanda, onde estará pela primeira vez desde que saiu em 1961. Chega na próxima semana, já depois das eleições e lamenta não ter participado em nenhuma das que se realizaram no país. "Há uma resistência em relação aos angolanos da diáspora", vistos como "projectados num passado" e como "pessoas mais ou menos inúteis por sermos desconectadas", diz. "Não há uma discriminação expressa. A lei não existe nesse sentido. O que se diz é que não foram ainda disponibilizados meios no país para que os angolanos no exterior pudessem votar. Este assunto ficou preterido pela situação da guerra".

"Pensar em Angola longe dela"

Porque vivem num espaço de maior liberdade, em que a circulação da informação também é maior, em que "a aparente coacção [relativamente às escolhas eleitorias] ou a retaliação são mais difusas", as pessoas da diáspora "têm um olhar diferente". Esse olhar diferente é uma coisa que o poder em Angola teme? "Temer, não. Mas é um olhar que incomoda."

Manuel Luís Dias dos Santos "Nelo" ("nome de casa") nasceu há 46 anos em Luanda. Angola é também o país onde nasceu a sua primeira filha, hoje com 21 anos. A infância, adolescência e parte da idade adulta, viveu-as em Benguela. Votou nas primeiras eleições de 1992, depois das quais Angola voltou à guerra. O país nessa altura não tinha estradas em condições mas chegou-se a quase todas as partes do país, e isso já foi um grande feito, diz Nelo. "Seria impossível a diáspora votar."

Porém mais de 15 anos depois da paz, a exclusão da diáspora é antes um reflexo da pouca atenção dada aos angolanos fora do país, defende. "Temos países mais pobres do que Angola, como Moçambique ou Cabo Verde" que incluem as suas diásporas nas eleições. "Angola é uma excepção."

Durante 25 anos, Nelo trabalhou no Ministério de Interior de Angola e diz "saber o que diz". Fala em "várias dimensões" de uma mesma diáspora. A grande maioria está nos países limítrofes, em virtude das várias fases da guerra entre o MPLA e a UNITA. "Entre elas, muitas pessoas ficaram desiludidas com a forma como foram deixadas à sua sorte."

Fala de pessoas que saíram das suas aldeias, das suas comunas, eram refugiados, e quando quiseram regressar não conseguiram reaver as suas casas, exemplifica. "Pessoas que se identificavam com a UNITA, por exemplo. Quando regressaram, algumas encontraram uma certa hostilidade e isso também levou muitas a retomar o caminho de volta aos países que as tinham acolhido", diz.

"Não houve da parte do Governo, um esforço para a identificação e registo dessas pessoas e, quando o fez, foi em função das políticas internacionais de repatriamento [da ONU] que mobilizaram recursos para o regresso dos deslocados e refugiados", insiste: "Também são cidadãos angolanos, independentemente de serem cidadãos de outros países. Alguns até progrediram na sociedade desses países, mas não têm documentos angolanos. Perderam-nos durante a fuga, na guerra, e não voltaram a conseguir emiti-los."

Documentos como a cédula de nascimento, o bilhete de identidade ou o passaporte continuam dependentes da administração central para existirem, reforça Nelo. Por isso, o seu filho de seis anos, nascido em Portugal, com dupla nacionalidade, não tem ainda os documentos angolanos.

"Votar representaria", para Nelo, "em primeiro lugar uma responsabilidade de todos os actores políticos, na oposição ou no poder, em relação àquilo que é a diáspora e os problemas da diáspora. A diáspora não deixa de pensar Angola por estar longe dela."

"Ninguém desiste do seu país"

O pai de Ulika da Paixão Franco foi fuzilado, no dia 24 de Junho, à porta da Rádio Nacional de Angola, onde trabalhava e fazia o programa Kudinbanguela (que significa "a nossa luta"). O seu nome, Adelino António dos Santos "Betinho", estava na lista das pessoas a abater (sem julgamento) na repressão do 27 de Maio de 1977 em resposta ao surgimento de correntes alternativas dentro do MPLA que questionavam o rumo tomado pelo partido de Agostinho Neto.

A rádio do pai de Ulika dedicava muito tempo aos discursos do Presidente Neto — "discursos de mais de uma ou duas horas", mas com o tempo foi dando espaço à música, à intervenção cultural. "Dizia-se que Urbano de Castro era mais ouvido nos musseques do que o Agostinho Neto". A música do cantor e compositor angolano, nascido em 1941, tinham "uma força enorme junto das populações", conta Ulika Paixão, sobre o tempo em que a Rádio Nacional de Angola era como um "veículo contra a repressão".

Assim que chegou à presidência, depois da morte de Agostinho Neto, José Eduardo dos Santos pôs fim aos processos de julgamentos (que ainda decorriam contra os perseguidos do 27 de Maio) e dissolveu a DISA (Direcção de Informação e Segurança de Angola) – a polícia política de Agostinha Neto, o que deu "esperanças às pessoas de que, com Eduardo dos Santos, haveria mudanças".

A mãe de Ulika esperou uns tempos, queria fazer a sua vida em Angola, mas percebeu que o país não ia seguir o rumo desejado, e com a filha doente em Portugal, deixou Luanda para nunca mais voltar.

Ulika nasceu em Luanda mas desde muito cedo viveu em Lisboa – primeiro com uma família amiga comunista e depois com a mãe — por razões de saúde. É portadora de uma anemia crónica resultante de uma ligação deficiente na distribuição do oxigénio pelas células que a manteve, várias vezes, em risco, em coma, ou internada. Ainda hoje é frequentemente submetida a tratamentos. Licenciada em Comunicação e Cultura pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e em Filosofia pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, iniciou o seu percurso profissional ligado à comunicação em 2000.

Em 2002, era muito nova para votar. Não votou nas eleições gerais de Agosto de 2008, nem nas de Setembro de 2012. Mas quis votar nas deste ano. "Ninguém desiste do seu país." Voltou pela primeira vez a Angola, em 2012. "Senti logo que Luanda era a minha cidade." Regressou em 2013, em 2014, e obteve os documentos que dificilmente conseguiria a partir do estrangeiro (por falta de serviços nos consulados): Bilhete de Identidade, Passaporte, Cartão de Contribuinte. Ficou a faltar o Cartão de Eleitor, para o qual é necessário ter o registo de vida, um documento que atesta que as pessoas recenseadas não morreram.

"O único motivo que tinha para ir a Angola este ano" — estas eleições — esvaziou-se em 2016 quando regressou de Luanda sem a documentação necessária para se recensear. Só lhe faltava o registo de vida, que acabou por não conseguir perante as burocracias exigidas e os sucessivos adiamentos dos serviços.

"Para mim seria importante votar, se o sistema funcionasse. Concordando eu que a diáspora vote, vejo Angola, ao mesmo tempo, como um país que ainda não tem as suas representações diplomáticas preparadas para assumir a responsabilidade política da contagem de todos esses votos. Seria mais um problema, mais uma confusão."

Ulika não vê Angola como uma ditadura. Mas também não a vê como uma "democracia em que todo o cidadão vê os seus direitos legítimos apoiados pelo Estado, e isso espelha-se nas embaixadas".

E acrescenta: "Não creio que as nossas embaixadas trabalhem para proteger o cidadão angolano. São casas de Angola, para efeitos de negócios, com a China, a Alemanha" e outros países.

E conclui: "Foi em Portugal que eu consegui encontrar o equilíbrio da minha saúde e que a minha mãe conseguiu alcançar a estabilidade emocional e financeira", depois da violência do 27 de Maio de 1977. "Mas estar em Angola é que me faria sentir a 100% o que eu sou realmente. Talvez por o meu pai ter morrido lá."

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