O livro de Clinton sobre as eleições chama-se O que aconteceu – e não é uma pergunta

Candidata do Partido Democrata publica a sua versão dos acontecimentos que levaram a uma derrota humilhante frente a Donald Trump. Assume a responsabilidade pelos erros, mas dispara críticas para todos os lados: de Bernie Sanders a Vladimir Putin, passando por Barack Obama.

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Clinton diz que Sanders prejudicou-a junto dos mais progressistas ao ligá-la aos grandes interesses de Wall Street WIN MCNAMEE/EPA
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Clinton diz que Sanders prejudicou-a junto dos mais progressistas ao ligá-la aos grandes interesses de Wall Street Jim Young/REUTERS

A notícia de que Clinton ia lançar um livro cheio de "intriga, suspense e drama internacional nos mais altos corredores do poder" deixou em pulgas muitos leitores interessados em política americana. Mas o romance que está a ser escrito por Bill Clinton só vai ser publicado em Junho de 2018. Até lá, quem estiver interessado em perceber o que raio aconteceu no ano passado, quando Hillary Clinton foi empurrada para fora da corrida à Casa Branca por um brutamontes que pouco ou nada valia nas casas de apostas, já pode comprar What Happened – um livro de 500 páginas em que a ex-candidata democrata escreve quase tudo o que não quis dizer até agora sobre a derrota política mais surpreendente das últimas décadas.

Para evitar confusões, estamos a falar de dois livros diferentes: The President Is Missing (O Presidente está desaparecido) é o título de um romance que ainda está a ser escrito a meias entre o ex-Presidente Bill Cinton e a máquina de best sellers James Patterson, e que só vai ser lançado no próximo ano; What Happened (O que aconteceu) é um livro de não-ficção escrito por Hillary Clinton que foi lançado esta terça-feira.

É certo que alguns líderes do Partido Democrata dariam tudo para trocar os títulos dos dois livros, com uma pequena correcção num deles: afinal, O que aconteceu não é um mau título para um thriller, e A ex-candidata está desaparecida não é uma má ideia para que o Partido Democrata possa finalmente deixar o passado para trás e começar a criar uma alternativa credível e forte para tirar Donald Trump da Casa Branca em 2020.

Mas não foi isso que Hillary Clinton quis fazer com o seu futuro depois de ter sido derrotada pela segunda vez numa candidatura à presidência dos Estados Unidos.

Os primeiros sinais de que vinha aí um novo livro surgiram em Fevereiro, mas nessa altura pensava-se que as páginas seriam dedicadas a contar "histórias da sua vida, incluindo as suas experiências na campanha presidencial de 2016". Mas o que chegou esta semana às livrarias é precisamente o contrário: uma história sobre a campanha presidencial de 2016 que inclui algumas experiências da sua vida.

What Happened é um daqueles (poucos) livros que se criticam sem serem lidos. Pelo menos é isso que se depreende dos textos que têm sido publicados nos vários jornais e sites de informação nos EUA. Mais do que qualquer crítica ao valor literário e à fluidez da prosa, o tema comum à maioria desses textos pode ser resumido numa pergunta sobre a simples existência do livro: "Porquê?"

Um grito, mais do que uma explicação

Há dois problemas com o livro de Hillary Clinton: por um lado, a ex-candidata do Partido Democrata parece mais apostada em continuar a apontar o dedo em várias direcções; por outro lado, a publicação do livro surge numa altura complicada para um Partido Democrata que ainda está a tentar reerguer-se do fracasso de Novembro de 2016 e que preferia não voltar a ver no topo das notícias as discussões sobre esse fracasso – os media mais conservadores, como a Fox News e a National Review, por exemplo, não perderam a oportunidade para voltar a lembrar os casos dos emails e da investigação do FBI e de retratar Hillary Clinton como uma má perdedora.

Hillary Clinton revela o seu objectivo logo na introdução do livro: "No passado, por razões que tento explicar, senti muitas vezes que tinha de ser cautelosa em situações públicas, como se estivesse a caminhar sobre um arame sem rede de segurança. Mas agora estou a baixar a minha guarda."

Em rigor, há uma passagem em que Hillary Clinton se penitencia pelos erros cometidos na campanha contra Donald Trump: "Assumo a responsabilidade por todos eles. Podemos culpar os dados, a mensagem, tudo o que quisermos – mas a candidata fui eu. A campanha era minha. As decisões foram minhas."

É difícil ser-se mais claro do que isto, mas mais difícil ainda seria escrever 500 páginas sobre uma campanha eleitoral agressiva como a do ano passado sem se acrescentar mais uns quantos parágrafos. E são esses parágrafos que estão a conquistar espaço nos títulos dos jornais: toda a responsabilidade que Hillary Clinton assume apenas e só para ela é também, de forma paradoxal, repartida por muita gente – nem Barack Obama escapa a um reparo.

"Por vezes questiono-me sobre o que teria acontecido se o presidente Obama tivesse feito uma comunicação ao país através da televisão no Outono de 2016 a alertar que a nossa democracia estava a ser atacada. Talvez mais americanos tivessem acordado a tempo para essa ameaça. Nunca saberemos", escreve Hillary Clinton.

Também o ex-vice-presidente Joe Biden merece uma palmada na mão, por ter dito que o Partido Democrata "não falou sobre aquilo que sempre representou" (ou seja, a defesa de uma classe média cada vez mais forte). "É uma afirmação notável, tendo em conta que o próprio Joe fez campanha por mim em todo o Midwest e falou muito sobre a classe média", critica a ex-candidata do Partido Democrata.

Mas a grande fatia do bolo de responsabilidades pela derrota é repartida por nomes que estão na lista vermelha desde a noite em que Donald Trump foi declarado vencedor: o ex-director do FBI James Comey; o senador Bernie Sanders; e o Presidente da Rússia, Vladimir Putin. E também os media no geral, com uma referência especial para o The New York Times.

Comey, Putin e o New York Times fazem parte da mesma acusação, em termos gerais: o primeiro porque resolveu investigar emails de Hillary Clinton a uma semana das eleições e anunciou um dia antes da votação que afinal não tinha encontrado nada de mal; o segundo porque roubou emails do Partido Democrata e do seu chefe de campanha, John Podesta; e o terceiro porque durante a campanha investigou mais o caso dos emails do que as possíveis ligações entre Donald Trump e a Rússia.

Ainda Bernie Sanders

Mas o ressentimento em relação ao seu principal opositor nas eleições primárias, Bernie Sanders, é evidente (acusa-o de ter manchado a sua imagem com golpes baixos sobre ligações a Wall Street) e está a ser visto como um sinal de que Hillary Clinton, afinal, ainda não percebeu bem o que aconteceu nas eleições do ano passado.

É verdade que a candidata teve mais quase três milhões de votos do que Donald Trump nas presidenciais, mas também é verdade que houve uma corrente antiglobalização e populista que dominou toda a campanha, corporizada por Trump e Sanders (cada um à sua maneira) e que marcou a diferença em relação à ala mais tradicionalista de Clinton. É como se Hillary Clinton tivesse feito a campanha no seu velho carro utilitário, com a bagageira cheia de mais do mesmo, sem nunca se ter apercebido de que estava a ser ultrapassada por um camião carregado de novidades.

Nas passagens que já se conhecem de What Happened surge uma Hillary Clinton irreconciliável consigo mesma – e, por isso, distante dos candidatos sem filtro que foram Donald Trump e Bernie Sanders. Isso mesmo fica patente na passagem em que Clinton fala sobre uma das declarações que mais a prejudicaram durante a campanha – quando chamou aos apoiantes de Donald Trump uma "cesta de deploráveis" (basket of deplorables no original), que a levou depois a fazer um pedido de desculpas embaraçoso.

"Estou arrependida de ter dado uma prenda ao Trump com o meu comentário sobre os 'deploráveis'. Mas muitos apoiantes do Trump têm mesmo opiniões que eu considero ser – e não há outra palavra para o descrever – deploráveis", escreve Hillary Clinton, revelando que, afinal, aquele pedido de desculpas foi apenas uma questão de cálculo político – um conceito que não deixou ninguém perto da Casa Branca no ano passado.

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