O mundo que espera Guterres

Era mais fácil ser secretário-geral da ONU na era do mundo bipolar e da Guerra Fria ou na brevíssima e ilusória Pax Americana que se lhe seguiu.

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Em 2014, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros da França, Laurent Fabius pediu aos seus colaboradores que lhe respondessem a uma questão: “Porquê tantas crises no mundo ao mesmo tempo?” Ignoramos a resposta — se é que foi dada —, mas António Guterres deverá estar a fazer a mesma interrogação. Há cada vez mais crises a controlar e cada vez menos meios para o fazer.

Não cabe ao futuro secretário-geral da ONU fazer a teoria do presente caos, mas é com os seus actores, e já não apenas com as suas manifestações, que ele se vai agora defrontar. Sabe que não será o líder do mundo. Sabe apenas que a ONU está no olho do ciclone.

Ele parte de uma experiência ou de um observatório excepcional onde muito terá aprendido: os refugiados. As sucessivas crises de refugiados ligam-se a sangrentos e quase insolúveis conflitos locais — “guerras dos pobres”, como na África. Mas também são um imprevisto produto da globalização, que não se limitou aos fluxos de bens e capitais, mas se tornou também uma mola de movimento de populações. Aquilo a que um filósofo chamou “a globalização do sofrimento”.

Do ponto de vista europeu, o foco mais dramático é hoje a guerra na Síria. E o que é a guerra na Síria? É o produto do caos regional que se seguiu às “primaveras árabes”, a luta pela hegemonia entre as potências do Médio Oriente, a conjugação fatal entre este conflito e o factor religioso. Para se tornar finalmente uma ressurgência de “guerra fria” entre a Rússia e os Estados Unidos.

A grande mudança de estatuto de Guterres é que terá de passar da “gestão” de crises para o plano da resolução dos conflitos. Era mais fácil ser secretário-geral da ONU na era do mundo bipolar e da Guerra Fria ou na brevíssima e ilusória Pax Americana que se lhe seguiu. Emergiram novas potências enquanto, após a guerra do Iraque, os Estados Unidos se retraíram, deixando um vazio que nenhuma outra potência ou coligação de potências pode preencher. Dos mares da China ao Médio Oriente, passando pela Coreia do Norte, surgem novas ameaças. Pesada de consequências poderá ser ainda a conjugação do retraimento americano com a crise económica e política que avassala a Europa. O desafio é navegar num mundo em que os Estados Unidos, continuando a ser a “maior potência”, perderam grande parte da influência.

Os efeitos perversos da “nova desordem mundial” manifestam-se dentro dos próprios Estados, numa vasta maré de retrocesso da democracia: de acordo com o politólogo americano Larry Diamond, “entre 2000 e 2015, a democracia ruiu em 27 países”, enquanto “muitos regimes autoritários existentes se tornaram menos abertos, transparentes e responsáveis perante os seus cidadãos”. A que devemos acrescentar a perigosa deriva de países da União Europeia para modelos nacionalistas com traços autoritários.

A nova “ordem” internacional já não conta apenas com Estados nacionais, mas com múltiplos actores não estatais, dos movimentos jihadistas às ONG humanitárias.

Tal como não conta apenas com os interesses, mas com as mais delirantes paixões. No seu último livro, La Revanche des Passions (2015), o filósofo político Pierre Hassner lembra que a nossa grelha de leitura do mundo e da barbárie, inspirada no “realismo”, é cada vez menos pertinente. Os povos não seguem tanto os seus interesses como as suas paixões: o medo, a avidez, a vaidade, a raiva ou o desespero. “São paixões compósitas resultantes da evolução das desigualdades e o estatuto dos diferentes actores, como o ressentimento ou o desejo de vingança. Os piores excessos vêm dos dominantes que temem perder o poder, dos dominados que se tornaram dominantes, da raiva dos perdedores e da vingança dos novos ganhadores.”

Tudo isto faz parte do mundo que espera António Guterres.

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