O mundo ao contrário

Para eles, entender que a desigualdade (de género, social, étnica) subsiste é simplesmente uma declaração "politicamente correta", isto é, a demonstração de que existe uma "ditadura cultural de esquerda" em todo o Ocidente.

É curiosa esta indignação de uma certa direita com Donald Trump. Creio que há mais preocupação em não pragmatizar antes do tempo (quando se começar a, pensando bem, dar-lhe razão) do que há sinceridade. Trump representa o que a extrema-direita sempre representou para os conservadores tradicionais: as questões são as mesmas, o tom é que é umas oitavas acima. O partido que o elegeu foi o Republicano e não uma qualquer liga supremacista. Alguns dos nossos neocon pátrios têm usado um argumento que já indicia o caminho: mais do que caricaturar Trump (como se a personagem requeresse sequer caricatura...), importante é perceber porque se vota nele. Eu estou plenamente de acordo, mas duvido que partilhemos um enunciado de causas socioeconómicas que estas direitas entendem ser curativas ou inevitáveis.

O triunfo de Trump resulta, entre outros fatores, de um esforço de manipulação da realidade que, em muitos casos, não está mais do que um degrau acima do discurso da maioria dos governos ocidentais. O mais preocupante é este tom de preparação para a guerra. Trump proclama aos quatro ventos que o mundo inteiro se aproveita da América - mas a "vítima" tem desde a Guerra do Golfo de 1991 a maior presença militar planetária da sua história. Ao seu lado, Steve Bannon, o novo homem forte da política de segurança americana e o mais temido dos ideólogos da ultradireita que chegou ao poder, dizia há menos de um ano que “dentro de cinco-dez anos entraremos em guerra no Mar do Sul da China. Não tenham dúvidas". Que os chineses "cheguem aqui e, na nossa cara, (...) nos digam que aquele é um antigo mar territorial deles” (Breitbart News, 10.3.2016) parece-lhe intolerável - mas a verdade é que são os americanos que têm há décadas bases militares à volta de toda a costa chinesa (Japão, Coreia do Sul, Austrália, Filipinas, autorização para usar instalações militares tailandesas, malaias, indonésias...) e que, pelo contrário, os chineses não têm base alguma fora do seu território (e muito menos no Canadá, ou no México ou em qualquer ilha do Pacífico, por exemplo). Da mesma forma, lembremo-nos que, só nos últimos cinco anos, os americanos bombardearam a Síria, a Líbia, o Iraque ou o Iémen, e desde há 17 anos que estão em guerra no Afeganistão - mas, para Trump, são os árabes e os muçulmanos de todo o planeta que querem entrar nos EUA para atentar contra a segurança dos americanos. A partir de agora, mais do que já o era, o discurso oficial em Washington é o do Choque de Civilizações: "há um Islão e uma China expansionistas, motivados, arrogantes. E que pensam que o Ocidente judaico-cristão está na defensiva” (S. Bannon). Preparemo-nos, portanto!

A inversão descarada da representação das relações de força, num contexto geral de ideias simplistas (que caibam num tweet) e de teorias da conspiração, é a estratégia central desta forma peculiar de construir consensos: não há racismo, há é imigrantes (os mais pobres e os mais explorados em qualquer mercado de trabalho) e refugiados que querem abusar das prestações sociais e que colocam bombas; a escassez de recursos do Estado não é culpa dos ricos que impunemente fogem ao fisco e conseguem que se legisle a seu favor, os pobres é que abusam. Esta mesma lógica está presente nas questões de moral social: não são as mulheres ou as minorias de orientação sexual que continuam a sofrer ofensas e ataques, são as feministas e os ativistas dos direitos humanos que querem impor uma "doutrina totalitária de género" à maioria da sociedade.

O simples enunciado do raciocínio que acabo de fazer suscita em qualquer neoconservador (Trump é apenas um deles) a enésima inversão da realidade: para eles, entender que a desigualdade (de género, social, étnica) subsiste é simplesmente uma declaração "politicamente correta", isto é, a demonstração de que existe uma "ditadura cultural de esquerda" em todo o Ocidente. Foi contra ela que o norueguês Anders Breivik matou 77 pessoas...

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