O medo paralisa

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A palavra, diz o pintor Júlio Pomar, é uma “espécie de bombom com recheio” — quando se morde, rebenta em várias direcções. Com o desenho humorístico, não é preciso rebentar nada. O recheio está à vista de todos e é quase sempre incómodo, muitas vezes desagradável, por vezes feio.

Não há subtileza no turbante que é uma bomba, como não há subtileza no padre que levanta o hábito de uma freira libertina. Se a sátira é dura, os cartoons são uma rocha. Doem mais e quando caem causam estrondo. É por isso que quem faz sátira tem uma dose de coragem acima da média. E também uma dose razoável de loucura. Os que calçam os sapatos do humor corrosivo e sem tabus sabem do que falo. Na liberdade cabem a transgressão e o desafio, o mau gosto e o chocante. Na censura só há vazio. Horas depois do atentado, Christian Adams, o cartoonista político do Sunday Telegraph, criou um desenho exemplar dos cartoons que os radicais gostam. Não precisou de muito. Fez um rectângulo e deixou-o em branco (www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/combater-o-medo-pelo-cartoon).

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Vigília em Estrasburgo, na quarta-feira, para homenagear as vítimas do atentado contra o Charlie Hebdo Carlo Allegri/Reuters

Nada disto é novo. Só as palavras, sozinhas e sem ajuda do desenho e do humor, tocam em nervos sensíveis e geram reacções incompreensíveis. Chamar “inimputável”, “privilegiado”, “ladrão”, “pacóvio provinciano”, “patusco” ou “palhaço” a celebridades da vida pública portuguesa acabou na justiça. Muitos políticos não têm jogo de cintura e não gostam do politicamente incorrecto. Preferem aplausos e concordância. Aí, somos todos iguais. Mas tal como recebem mais aplausos do que receberiam se não fossem políticos, seria bonito terem mais resistência à crítica, mesmo que injusta.

Os cartoons transportam-nos para um outro nível, mais radical e universal do que as palavras. Expõem o ridículo e gozam à grande com o que o bom senso nos diz para nem sequer tocar. Identificam a linha de fronteira e ultrapassam-na. Enquanto dão uma gargalhada. Ainda nenhum cartoonista gozou com o ataque terrível de Paris, no qual foram assassinadas dez pessoas do Charlie Hebdo, mas não deverá faltar muito.

Onde ficamos todos depois disto? Entre as homenagens, há um cartoon optimista: um cartoonista do Charlie Hebdo acabado de ser decapitado surpreende o terrorista deitando-lhe uma grande língua que sai do seu pescoço. Queremos dizer aos fanáticos religiosos que não temos medo e que achamos os terroristas ridículos, que não os levamos a sério e que até brincamos com eles. É mentira. O que sentimos é bem prosaico e chama-se medo. E o medo, sabemos bem, paralisa.     

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