O lixo do quintal que se transforma em luxo

Elementos de três comunidades rurais do arquipélago de São Tomé e Principe aprenderam a recolher o lixo e a transformá-lo num luxo que ainda chega a poucos por aquelas paragens: acender um fósforo para acender um fogão ou uma lâmpada. O projecto Bio&Energy foi financiado pelo Fundo Português de Carb

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O sorriso aberto de Adelina Tavares poderia muito bem ser a imagem para mostrar a forma ”leve-leve” como os habitantes do arquipélago de São Tomé e Príncipe encaram o dia-a-dia. A natureza é generosa, a fruta-pão, elemento basilar na dieta dos santomenses, não cai do céu mas cai das árvores e a vida tem muitos desafios que é preciso enfrentar. Mas o “leve-leve” do sorriso de Adelina pode dar subitamente lugar ao susto e à pressa. De repente, não havia tempo a perder. A comitiva que trazia os ministros acabava de estacionar no terreiro de Novo Destino, a comunidade com cerca de 200 pessoas localizada na zona este da ilha de São Tomé e na qual Adelina se orgulha de morar. Ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, assim que Domingos Silva, o “chefe” da comunidade, acabasse de os receber e de lhes dar as primeiras palavras de boas vindas, eles, os ministros, iriam querer ver o seu fogão.

Adelina até já tinha visto os carros a subirem o estradão de terra batida, ainda antes do cunhado lhe gritar: “Ambrosina, despacha-te, eles já estão aqui”. Ambrosina é Adelina Tavares. O primeiro é nome de quintal – o nome fictício que têm quase todos os habitantes da aldeia –,  o segundo é nome oficial, que deixam no registo. Os nomes nunca coincidem, e isso também não é uma coincidência.

O cunhado chama-se Ermelindo Varela e fica a medir de longe a corrida que Ambrosina faz para trocar de blusa – era essa a pressa – e a apreciar a forma como ela rapidamente se pôs à frente dos ministros e atrás do fogão: “Agora já não tenho de ir apanhar lenha no mato todos os dias. Faço aqui o mata-bicho (pequeno-almoço), o almoço, e às vezes também dá para o jantar”, relata.

O fogão de Ambrosina é uma grelha de ferro com bico adaptado, que assenta numa bancada de tijolo, entre quatro paredes enegrecidas pelo fumo da muita lenha ali queimada durante anos. Não é um fogão qualquer – é o testemunho de que pode haver gás numa comunidade onde as casas não têm água, saneamento ou electricidade. A família de Ambrosina foi uma das 18 famílias beneficiadas com o projecto Bio&Energy, executado pela empresa portuguesa Ecovisão, e desenvolvido com o apoio da Cooperação Portuguesa, através do Instituto Camões e da Agência Portuguesa de Ambiente, e financiado pelo Fundo Português de Carbono.

Foi para inaugurar esse projecto que João Pedro Matos Fernandes, ministro português do Ambiente, e Carlos Vila Nova, o seu homólogo de São Tomé, se deslocaram pela primeira vez a Novo Destino, nome feliz dado a uma comunidade que Domingos Silva gosta de apresentar como exemplo de organização. Medido em quilómetros, a aldeia de Novo Destino até fica relativamente perto da cidade de São Tomé, capital do país – são menos de 20 quilómetros. Mas a deslocação a partir da capital não se faz em menos de 40 minutos e as estradas não são as melhores, muito menos as que fazem a ligação às comunidades que se situam mais longe do litoral. Carlos Vila Nova sentiu-se, até, na obrigação de pedir desculpa à comunidade: estando ali tão perto e ouvindo falar deste projecto há já dois anos, nunca lá tinha ido para o conhecer. “Não houve oportunidade. E peço-vos desculpa por isso. Mas estou muito contente com o que estou a ver”, disse, perante as dezenas de presentes que o miravam enquanto cortava a fita do portão que dava acesso ao digestor onde se produzia o gás que alimentava o fogão de Ambrosina. “Agora não há fumo. É só chegar um fósforo e já está”, explica Adelina Tavares, satisfeita e já com o sorriso "leve-leve" de regresso ao rosto.

O projecto Bio&Energy chegou a 18 famílias de três comunidades do aquipélago
Aplicou-se a tecnologia de digestão anaeróbia ao tratamento dos resíduos orgânicos
Os resíduos transformam-se em metano, o biogás que depois chega ao fogão
Às comunidades foi preciso ensinar como "alimentar" e tratar do sistema
Para a maioria da população ainda é necessário ir ao mato recolher lenha
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O projecto Bio&Energy chegou a 18 famílias de três comunidades do aquipélago

Soluções low tech

“Foi uma felicidade que a comunidade de Novo Destino recebesse um projecto como esse aqui”, admite Domingos Silva. Chegou a São Tomé com cinco anos, trazido pela mãe, cabo-verdiana, quando esta assinou um contrato com a Roça de Novo Café, situada uns quilómetros abaixo da aldeia de Novo Destino, e lhe permitiu trazer com ela cinco dos nove filhos. “Só voltei a Cabo Verde para conhecer a minha família quando tinha 24 anos. Mas o meu lugar é aqui. Já cá estou há mais de 50 [anos]”. Domingos  também beneficia directamente da comodidade que é não andar à procura de lenha. O biogás produzido no seu enorme digestor (o recipiente onde é depositado o lixo, que se transforma em biogás por acção de microrganismos anaeróbios) serve toda a família e ainda dá para mais alguns vizinhos. “Agora até posso aquecer água para tomar banho!”, comenta uma das filhas de Domingos, Erina, de 25 anos, sobre aquilo que pode ser considerado um luxo em plena selva tropical.

Quando a Ecovisão conseguiu os apoios para avançar com o projecto, e se propôs a testar a aplicabilidade da tecnologia de digestão anaeróbia ao tratamento dos resíduos orgânicos dos agregados familiares de zonas rurais de São Tomé e Príncipe, sabia que tinha um enorme desafio pela frente.

Não foi levar a palavra “projecto” à comunidade que foi difícil – são sempre bem aceites, porque significam apoios concretos, investimentos aplicados, e, em alguns casos, empregos, ainda que temporários. Difícil foi convencer as populações que valia a pena recolher o lixo orgânico e fechá-lo num recipiente para que vários bichinhos transformassem esses resíduos em metano, o biogás que haveria de lhes chegar ao fogão. Desafiante foi selecionar essas comunidades, perceber as que produziam resíduos bastantes e as que estavam suficientemente estruturadas para aceitar famílias que testassem a tecnologia em regime piloto, uma vez que não era possível estendê-las a toda a comunidade. A seguir, foi preciso “moldar” uma solução para cada um dos locais: “Estamos a falar de uma tecnologia rudimentar, de low tech. E isso, às vezes, só aumenta o desafio. Capacitar técnicos e dar formação às pessoas que vão utilizar os equipamentos, para que eles durem no tempo, e continuem depois do projecto terminar, foi um processo longo, e muito intenso”, explica Maria João Martins, administradora da Ecovisão. “Mas é muito gratificante perceber que conseguimos mudar, para melhor, a vida das pessoas”, remata.

O projecto durou quase dois anos, implicou um investimento de cerca de 700 mil euros e serviu para instalar cinco digestores em três comunidades rurais. A ilha está dividida em sete distritos, e os três que foram escolhidos para receber a intervenção (aldeia de santa Jenny, no distrito de Lembá), Novo Destino (Mé-Zochi) e Mendes da Silva (Cantagalo) ficam todos na envolvente do parque nacional do Obô, uma zona prioritária para proteger das acções de desflorestação.

A digestão anaeróbia é um processo biológico de decomposição da matéria orgânica na ausência de oxigénio. Este origina dois produtos: o biogás, que pode ser usado em fogões adaptados ou como alternativa para iluminação, e o ‘digerido’, que é a fração sólida que resulta da digestão anaeróbia e pode ser utilizado como fertilizante. Débora Carneiro foi a técnica da Ecovisão que andou no terreno durante meses a ensinar às populações como deveriam tratar o digestor. “Digo-lhes para pensarem no digestor como se fosse um ser vivo, que tem de ser alimentado todos os dias. Se só comer banana não fica muito confortável, mas se comer mais variado fica satisfeito. E não devem comer de mais, nem de menos”, conta.

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Para a maioria da população, ainda é necessário ir recolher lenha ao mato, várias vezes por dia DR

"Branca está no buraco"

A lição foi bem aprendida. Eduardo Anselmo Tavares, ou Tchoca, como é conhecido no quintal de Mendes da Silva, explica a freima diária a que se dedica para garantir que não falta gás para aquecer a comida das oito bocas que tem na família. “Preciso de colocar todos os dias quatro baldes de lixo. Junto folhas, casca de banana, casca de jaca, casca de fruta-pão, tudo o que houver, já disse aos meninos para não porem garrafas nem casca de doce [papel de embrulho dos rebuçados e outras guloseimas] no balde. Depois tenho de partir tudo muito fininho, para caber no tubo e ligo a mangueira de água. Sei que vai funcionar”, relata, enquanto exemplifica, de catana na mão e com evidente orgulho, a técnica que desenvolveu para partir os resíduos bem fininhos. Tchoca tem um pequeno curral com porcos e é a ele que recorre quando precisa de mais gás. “A menina Débora explicou que com o cocó de boi o gás produz mais rápido, é mais forte. Eu não tenho esse recurso, mas tenho o cocó do porco e das cabras. Também o uso várias vezes”, anunciou.

O digestor que foi construído em Mendes da Silva é um bom exemplo de como não é preciso importar nenhum equipamento especial, mas antes usar os normais materiais de construção civil. É por isso que Tchoca fala num tubo: se nas outras comunidades os resíduos são despejados directamente na boca do digestor, em Mendes da Silva são vertidos para uma espécie de banca de cozinha, que funciona como um funil – “Queríamos garantir que os resíduos eram partidos bem fininhos”, explica Débora Carneiro.

A comunidade foi também envolvida na construção, e a verdade, admite Débora Carneiro, é que foi muitas vezes preciso dar o exemplo físico para os mobilizar. “Tínhamos combinado fazer a abertura das valas num determinado dia, e depois ninguém apareceu. Foi só quando uma criança se pôs a gritar ‘Branca está no buraco’, que apareceram, por vergonha, por estar ali eu sozinha a escavar para eles”, conta Débora. Foram 20 meses muito intensos. Débora insistia em ser chamada pelo nome, não queria que Branca fosse o seu nome de quintal. “Foi preciso conquistar a confiança”, admite.

Na cerimónia de inauguração de Mendes da Silva, Tchoca não quis parecer mal agradecido ao ministro de São Tomé, mas não resistiu em fazer mais pedidos: “Agora é preciso que toda a gente tenha acesso ao biogás, e era preciso que chegasse a iluminação à comunidade”. Na cerimónia, Carlos Vila Nova disse: “vamos ver, talvez, quem sabe”. Ao P2, dias depois, confirmou que não. “Não poderemos fazê-lo agora. Não se justifica o investimento, não haveria retorno disso”.

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Chegar às cantinas das escolas

Dedé, 23 anos, tem luz na cozinha graças a este projecto. Mora em Santa Jenny, a mais pequena e também a mais isolada das comunidades que receberam o projecto Bio&Energy. Dedé é quem se ocupa do digestor da aldeia e agora até tem um fogão só para si. Partilhava-o com a “mãe” Irene, mas a diabetes e um pé amputado impedem-na de sair da cidade de São Tomé, a capital da ilha, para subir até Santa Jenny. A produção de gás é tanta, que do “seu digestor” sai um tubo improvisado que conduz até um balão vermelho, que vai enchendo até se tornar gigante – e dar sinal aos outros três moradores da aldeia que podem usar o gás no seu fogão. “Foi difícil convencê-los a usar o gás, porque na comunidade gostavam era de ver o balão cheio”, conta Débora.

Nadisa é uma das que se habituaram a ver o balão cheio, mas nem que quisesse poderia utilizar o gás que tem à frente dos olhos – as ligações só servem a casa do vizinho. Com o filho de cinco meses pendurado no peito, e outros dois, de três e dois anos agarrados às saias, vai todos os dias, três vezes por dia, arranjar lenha para fazer a comida. “Eu também queria ter fogão”, confessa, apontando para o cubículo que lhe cabe na espécie de “comboio” de cozinhas que se desenha na aldeia.

Carlos Vila Nova não foi à inauguração de Santa Jenny. Mas sabe as expectativas que foram criadas. Só não sabe o que pode fazer para as cumprir. “Cabe-nos a nós que as coisas não fiquem onde nos deixaram. Existem mecanismos, mas o nosso problema são os procedimentos para lá chegar”, diz o ministro, referindo-se aos financiamentos. Da reunião que teve por esses dias com o ministro português soube que continua a haver intenção de colaborar com os PALOP no combate às alterações climáticas – “se há combate que nenhum país conseguirá vencer sozinho é este!”, afirmou Matos Fernandes. Dos 10 milhões de euros que o Governo português vai canalizar do Fundo do Ambiente para apoiar os PALOP, 1,5 milhões estão destinados a São Tomé e Príncipe. Vão servir para dar assistência à Empresa Municipal Águas e Saneamento. “É uma assistência técnica para dar formação à nossa equipa para perceber, por exemplo, como é que se detetam fugas e como se ligam alguns tubos de água. As perdas são muito grandes. Dentro do perímetro urbano da cidade de São Tomé temos 52% de perdas. A Águas de Portugal foi naturalmente o parceiro escolhido”, explicou Carlos Vila Nova.

O ministro santomense confessava, depois da inauguração, que acolheu bem o projecto mas que nunca depositou nele muitas expectativas – nem boas nem más. “A verdade é que vemos aqui muitos investimentos que depois não têm resultado nenhum. Mas este correu bem. Merecia ser continuado. Podemos ver que os resíduos também podem ser um recurso valorizado. Vamos ver se é possível”, afirmou Carlos Vila Nova ao P2, confessando que gostaria de ver este projecto a alimentar as cantinas das escolas.

A Ecovisão fez as contas de quanto precisava para alargar o projecto a toda a população das três aldeias – cerca de um milhão de euros. Depois de ter desenvolvido mais mil projectos, em 14 países espalhados por quatro continentes, está a fazer várias tentativas para não ter de abandonar ainda São Tomé e Príncipe.

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